terça-feira, 15 de novembro de 2011

Herzog e a caverna dos sonhos esquecidos



"E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?" - Diálogo entre Sócrates e Glauco (Platão. A República. Livro VII)


Assisti a este documentário em duas versões: primeiro pelo modo convencional, em 2D, direto do meu notebook, e, depois, em 3D, em uma boa sala de cinema. É outro filme. Finalmente descobri que o 3D pode ser realmente uma linguagem relevante para o cinema (não é um acessório ou um enfeite neste caso, mas um instrumento). Sem querer me alongar, na primeira cena dentro da caverna caiu meu queixo. A imagem toca, emociona.

Pelo desenvolvimento do registro, suspeito que a intenção inicial do diretor teria sido fazer um documentário sobre pinturas rupestres em geral e filmar as cavernas de Lascaux, mas, quando descobriu que isto não seria possível, resolveu focar suas lentes afiadas (lascadas) no complexo descoberto por Jean-Marie Chauvet, às margens do rio Ardèche, no sul da França.

As limitações de registro são evidentes: os gases tóxicos da caverna permitiam a permanência da equipe apenas uma hora por dia, e desde que não ultrapassassem o limite físico da passarela metálica de 60 cm instalada para possibilitar a caminhada (necessariamente em fila) dos exploradores-cineastas, de modo a comprometer o mínimo possível a preservação.

Talvez estas dificuldades da etapa de produção justifiquem os grandes saltos para os Alpes suevos da Alemanha. Conversei com amigos que sequer perceberam que Herzog havia filmado em mais de uma caverna. Mas, ainda que o recorte escolhido seja de alguma forma questionável, o tema não. As profundezas da terra exercem um verdadeiro fascínio sobre qualquer ser humano: os perigos e as aventuras de Julio Verne, os anões mineradores de Tolkien, a espiritualidade das embriagadas e embriagantes pítias de Apolo e os desabamentos impiedosos da Pachamama; tudo o que há de mais primitivo e espiritual vem à tona ao deslizarmos à escuridão sem fim das fendas da caverna.

Conforme o argumento se desenvolve, o olhar aguçado do historiador, do arqueólogo, acaba cheirando o perigo do anacronismo, das generalizações, e isto é sim um incômodo, uma pedra no sapato que perdura ao longo do filme, que faz perguntar, por exemplo, por que estaria ali um deslocado perfumista no lugar de um profissional da área. Incomodam as perguntas feitas ao jovem pesquisador Julien Monney, as ausências. Existe ali algo que se perde, uma profundidade que poderia ter sido explorada.

Como foram feitas aquelas pinturas paleolíticas? Por quem? Com qual material? Fala-se no neanderthal (e a sua incapacidade simbólica), fala-se no cro-magnon, no sapiens-sapiens, mas qual a relação entre eles? Eles interagiriam, digladiavam-se? Por que o sapiens não representa o neanderthal em suas pinturas? Será indiferente à sua existência? Ou ele se vê como superior, ou como igual? Que lugar seria este?

Um homem se veste como se vestiria alguém àquela época: causa incômodo a teatralização da história, tão própria dos “museus de artes naturais”. Para piorar, o homem toca, com a flauta reconstituída, o hino norte-americano, o que causa outro desconforto: desejaria constatar o domínio das notas da escala musical que permitiria a execução de uma música contemporânea conhecida de todos nós? Desejaria apenas fazer uma piada? Qual a intenção da indulgência da edição ao manter a tomada?

E por que chamar de pré-história se de fato há história (há ali uma narrativa, uma história)? E como o governo deve lidar com a descoberta? Quais os limites entre a pesquisa e a preservação? Quais as diferenças do olhar entre o biólogo, o espeleólogo, o arqueólogo, o turista, o geólogo, o antropólogo, o botânico, o zoólogo ao lidar com a descoberta? Construir um duplo da caverna ao lado dela? E aquele final, o que era aquilo? Filmar uma usina nuclear, uma estufa com espécimes albinos, sugerindo uma alteração evolutiva? Não estaria a narração em voice-over do diretor exageradamente dramática?

Independentemente de como se responda a estas perguntas, é uma obra importante para o cinema, sobretudo pela forma, que é particularmente importante nesse filme, e o diretor traz isso para a discussão. Sob este ângulo, a análise cresce, porque o olhar aqui é o do cineasta. Sua preocupação é com a construção da linguagem, e aqui ele parece ser exímio.

Primeiro ponto, evidente: é um filme em 3D. E se justifica? Sim, basta ver em 2D e depois no cinema. É possível quase esbarrar nas pontiagudas estalagtites e sentir a claustrofobia, a textura da rocha, a quase-aflição do soterrado vivo pelo peso da história e da natureza. Vendo pelo meu notebook, não tinha sequer percebido que o painel dos cavalos tem um declive daquele tamanho. O desenho acompanha a estrutura tridimensional das paredes, tornando relevante a profundidade e alterando os pontos de fuga em uma complexidade graciosa, quase instintiva – e praticamente imperceptível pela projeção indiciária permitida pela dupla dimensão da linguagem convencional. A Vênus coberta pelo Minotauro (única figura humana desenhada na caverna) só fui entender vendo no cinema. A linguagem traz algo próximo da experiência do vivido (falando chato: produz a tal da catarse).

Em segundo lugar: busca inovar na experiência sensorial (acresce à fantasmagoria cinematográfica). O que eu quero dizer com isso: o que antes era apenas a experimentação do 2D ganha profundidade. Ok, mas não é só isso. Ele pergunta: e se fosse possível ir mais além? E se o realizador pudesse acessar outros sentidos do aparelho sensorial do espectador? Se fosse possível ao cineasta dar a conhecer a seu público a corrente de ar frio vinda das rochas que permitiu a três homens adivinharem a existência de uma galeria subterrânea em dezembro de 1994? Aqui é possível dar relevância à presença do perfumista. Qual o cheiro da caverna? Ar preso há milhares de anos, gases tóxicos das plantas subterrâneas, ossadas, fogueiras apagadas, terra úmida? E os barulhos? Que música produziam e ouviam do instrumento de sopro? Cantariam aqueles homens? Gritavam, urravam, gemiam, ganiam? Bateriam palmas? Estalariam a língua contra o palato? E o tato? O calor e o frio? O torpor? E o gosto desta água, podre, ferrosa, envelhecida?

Em terceiro lugar, a construção da obra como problema, e não como dado. A inovação é evidente já fora da caverna. Quando assisti pela primeira vez, como muitos, fiquei pensando como ele teria filmado o primeiro plano-seqüência do “arco do triunfo” natural esculpido na rocha pela erosão e cravado no penhasco no desfiladeiro de Ardèche.

Ao reparar na trepidação, conclui que seria um elaborado sistema de cordas, roldanas e polias, por meio de um sistema de rapel que içasse a câmera, pois grua alguma seria capaz daquilo. Estava errado, evidentemente. Ele faz questão de mostrar isso. E como filmar dentro de uma caverna, com todas as limitações que lhe são inerentes? Com todas as dificuldades? Onde colocar a equipe de filmagem? Ele retira o glamour da cadeira do diretor e registra a "mão na massa", como se nos dissesse: veja, isso não apareceu do nada, alguém veio e fez isso. Este filme, estas pinturas. De outro lado, trata-se, a olhos modernos, de uma galeria de arte permanentemente fechada ao público: a tarefa do cineasta como dar a conhecer, tornar evidente e vivo cresce como um dos motores da narrativa.

Em quarto lugar, o papel da iluminação. A luz trepida e não se fixa porque quer experimentar a trepidação de uma fogueira. Os painéis de LED (três painéis planos de luz fria alimentados por cintos de baterias) buscam simular a visão das figuras para o homem que já não está mais ali. Em sua dança imprevisível, o fogo esconde e dá a ver momentos diferentes da representação pictográfica: ora se vê uma perna do bisão, ora outra - o bisão corre. Talvez alguém narrasse uma caçada mítica, heróica (um sonho hoje já esquecido) aos seus consortes.

Talvez outro alguém batesse as pedras para imitar (representar) os cascos se chocando com o chão, enquanto outro cantasse, enquanto outros assistissem, espectadores. Um protocinema? Ou um cinema muito mais sofisticado do que o nosso, pelo sem-número de experiências que dá a conhecer? Nós tentamos simular profundidade, cheiro, cor, imagem, som, tato. O deles já tinha tudo isto. A concepção central de frames persiste mesmo na era digital. Tal qual o símio que arremessa para cima o instrumento, que se transforma em uma espaçonave no “2001” de Kubrick, questiona-se a própria idéia de progresso ao mesmo tempo em que a reafirma.

Para quem não é de São Paulo, o filme estreou por aqui no contexto da 35ª Mostra Internacional de Cinema, que teve como tema de abertura justamente o Piteco do Maurício de Souza projetando imagens e a ilusão de movimento nas paredes de uma caverna. Nada mais apropriado.

Em quinto lugar, como desdobramento dos parágrafos acima (e muito mais poderia ser dito), a presença do mito platônico como indício da realidade inapreensível; de outro lado, a caverna como figura de linguagem para a sala de projeção, a fogueira como projetor que nos permite o acesso àquilo que, de outra forma, seria inalcançável. Nós somos unidos ao homem que viveu há trinta e dois mil anos: juntos a ele, assistimos, estarrecidos, à maravilha (mirabilia) da pintura. Falamos de nossos mitos vivos e perdidos, de nosso cotidiano e de nossos ancestrais. Assistimos, perplexos, a uma inovação técnica de nossa era. Tal qual o par de crocodilos, observamos a nosso outro (ao nosso igual) como se olhássemos a um espelho.


Links relacionados:

Matéria no The Guardian

Crítica do Luiz Zanin

Nuevas tendencias formales del cine documental en el siglo XXI (El ojo que piensa)


domingo, 13 de novembro de 2011

Uma separação: Jodaeiye Nader az Simin, de Asghar Farhadi




A 35ª Mostra Internacional de cinema de São Paulo, aberta sob a notícia da morte de seu fundador, o crítico Leon Cakoff, realizou uma justa homenagem a Sergei Paradjanov – preso sob Stalin, Brejnev e Andropov – e também a Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar e a não fazer filmes pelos próximos 20 anos, e contou com a presença do cineasta Mohsen Makhmalbaf, diretor, entre outros, de “Um instante de inocência” (1996).

A Mostra exibiu a obra “Olhando Espelhos”, de Negar Azarbayjani (2011), que narra a história de uma taxista e uma transexual no país pós-revolução islâmica. Tanto o filme de Azarbayjani como “A separação”, de Asghar Farhadi (2011), são, evidentemente, filmes de oposição, mas nenhum deles se chocou de frente contra as fraudes nas eleições de 2009 que elegeram Mahmoud Ahmadinejad como fez Panahi, ou desobedeceu à ordem judicial de não fazer filmes por 20 anos como o co-diretor de “Isto não é um filme” (2011), Mojtaba Mirtahmasb, que sofreu apuros para levar o não-filme  a Cannes.

Em fevereiro, logo depois de o júri de Isabella Rossellini  premiar “A separação” com o prêmio máximo da Berlinale, Farhadi fez votos para que terminasse bem o impasse em torno da prisão de Panahi. O Urso de Ouro trouxe consigo, portanto, a dimensão de uma ausência – ou de um exílio, tão presente na obra premiada e impresso, com suas peculiaridades, em outros artistas do Irã pós-revolução.

Apenas para ficar entre os casos mais conhecidos no Ocidente, Marjane Satrapi, autora de “Persépolis” (2007), iraniana, exilou-se em Viena e hoje vive na França. A história do filme “Cópia fiel”, de Abbas Kiarostami (2010), nascido clássico, passa-se predominantemente na Itália, com atores franceses, sendo o diretor um dos únicos que continuaram em Teerã depois da Revolução de 1979. Como lembra Jorge Furtado, Mohsen Makhmalbaf e sua filha deixaram o país depois de um atentado a bomba e hoje vivem escondidos e em segredo; seus familiares são perseguidos e ameaçados de morte. A atriz Marzieh Vafahmer foi condenada a um ano de prisão e a sofrer 90 chicotadas por participar do filme “Minha Teerã à venda”, de Granaz Moussavi (2011).

Este breve contexto nos fornece alguns subsídios mínimos que nos permitem passar à leitura do filme de Asghar Farhadi.

Em primeiro lugar, a culpa, em seus mais diversos sentidos, é uma articulação importante que ganha destaque ao encontrar, como pano de fundo, a negativa à presunção de inocência, tanto no plano institucional (ao nos defrontarmos com um sistema inquisitivo baseado na cultura do inimigo, em que a negativa dos direitos fundamentais é a regra e a liberdade é a exceção), como no plano das relações (mutuamente acusativas e hostis).

Os fatos que compõem a narrativa são construídos a priori pelos personagens a partir de suas próprias aspirações e conveniências. O espectador presencia a construção das diferentes versões e, ainda assim, não consegue se desemaranhar da teia de contradições e dilemas. É como se Farhadi pedisse gentilmente, por meio da linguagem cinematográfica, para que admitamos estar no (desagradável, porém seguro) papel de julgadores, que não somos inocentes nesta obra, tampouco objetivos ou desinteressados: ao utilizar a perspectiva subjetiva do magistrado, faz com que aquelas pessoas encarem diretamente os nossos olhos e somos tentados a indagar silenciosamente: quem será o culpado diante de mim?

Estamos no contexto da separação matrimonial, mas também entre inúmeras rupturas, que transcendem em muito o caso privado do marido e da esposa. A causa do rompimento está presente durante todo o filme, mas não pode ser dita. Simin questiona como educará Termeh, sua filha, em um país nesta situação. Qual situação? Ela emudece diante do juiz. Mas, se a discussão é muito mais ampla do que um divórcio banal, é justamente no turbilhão de subjetividades doméstico que Farhadi conta a sua história, impedindo, de maneira perspicaz, o distanciamento que talvez auxiliasse o espectador a alcançar uma pretensa depuração objetiva do ocorrido. O observador é posicionado ali na sala da casa, entre uma crise conjugal, um velho doente, uma criança sensível e um mundo de dilemas morais.

Há um atordoamento e uma dificuldade (talvez impossibilidade) de se resolver o problema que se coloca, e estamos diante de uma sociedade em crise, convulsionada. O espectador parece olhar através da doença do pai, perdendo em objetividade e racionalidade e, sempre que busca se posicionar como juiz e sentenciar, encontra-se diante de paradoxos e contradições praticamente intransponíveis. A cada movimento em falso de uma das “partes” (trata-se, sobretudo, de um julgamento), a outra também revela seu quinhão de culpa, e é retomado um equilíbrio insuportável. Afirma-se a todo o momento: ambas as partes são culpadas – o espectador concorda. Então seriam ambas inocentes? Não neste filme de Farhadi; não na Teerã de 2011.

Assim como no Rashomon de Kurosawa, estamos diante de diferentes versões, construídas por cada um dos personagens, que não podem dialogar entre si justamente porque partem de premissas diferentes, de critérios diferentes e, sobretudo, de compromissos diferentes: ora a peça-motriz é a honra, ora a fé e o sectarismo religioso, ora a lógica processual inquisitória iraniana, ora o mero oportunismo. Nenhum dos personagens-autores busca construir sua história tendo como compromisso a verdade; sequer o juiz-acusador, voltado ao formalismo e à realidade processual do sistema jurídico do seu país.

Quase ao final do filme, quando Razieh é instada a jurar sobre o Corão, o critério moral se choca com o compromisso religioso, que prevalece. O marido pede para que ela mantenha a história, negligenciando a verdade que parecia perseguir com determinação cega, pois trabalha a partir da honra: argumenta que sairia humilhado caso não prosseguisse com o juramento. Sua honestidade é desconstruída, assim como foi a de Nader, o acusado. Por fim, ao se dar conta do impasse instaurado, reage com a brutalidade que conhece, pois não há uma solução racional que dê conta da situação ou que a resolva por inteiro de maneira satisfatória.

Pelos olhos de Termeh, a filha do casal que se separa, percebemos algo que se perde: não apenas os laços com a unidade dos pais, do ambiente privado da casa, mas a própria perda da inocência – individual ou coletiva. Volta-se finalmente ao processo inicial, muito mais íntimo do que aquele movido por Razieh: o divórcio entre Nader e Simin. Determina-se que caberá a Termeh decidir com qual dos dois deverá ficar. Independentemente do resultado e da sentença dos julgadores, o peso da decisão sobre este emaranhado indecifrável em que o Irã se encontra é impiedosamente deixado nas mãos da próxima geração.