sexta-feira, 14 de maio de 2010

“Baixa cultura" escrita e formação da opinião pública na França pré-revolucionária: tentativa de reconstituição de um percurso historiográfico

O trabalho a seguir foi desenvolvido como requisito parcial para a conclusão da disciplina História Moderna II, no 2º semestre de 2007, sob orientação da Professora Laura de Mello e Souza.

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1. Introdução

Ao articular a extensão da filosofia ilustrada que precedeu o período revolucionário parisiense com o conceito de cultura escrita, Daniel Mornet (1933)[1] e Roger Chartier (1974)[2] pensaram, nesta chave, com um intervalo de quase meio século,[3] o papel do surgimento da opinião pública na dinâmica da relação entre o povo e as elites.

O objetivo do presente trabalho, foco que será privilegiado em detrimento de interpretações igualmente relevantes, mas não pertinentes ao recorte pretendido,[4] é realizar um breve mapeamento deste percurso historiográfico introduzido durante as aulas, com a intenção de melhor compreendê-lo, articulando, sempre que possível, os demais referenciais trabalhados em classe, em considerável relevo Robert Darnton (1982)[5], bem como, ainda que muito marginalmente, brevíssimos fragmentos das considerações de Reinhart Koselleck (1953),[6] Elisabeth Badinter (1983)[7] e Daniel Roche (2004)[8] ao longo do texto, sem nenhuma intenção de percorrer seus desdobramentos, mas como indicação de área de contato com o raciocínio principal, buscando, ao final, encaminhar problemas para reflexão posterior.

2. Mornet: a difusão geral das idéias; a batalha escondida

As relações entre a revolução francesa e a ilustração são ainda um campo prolífico de estudos, conforme aponta Lincoln Secco.[9] O objeto deste subitem é esmiuçar, ainda que superficialmente, em que medida Mornet legou novos instrumentos para conhecê-las.

Na metodologia proposta pelo historiador,[10] a tentativa de uma “história impessoal” que não se ofusque com o lustro dos “grandes nomes” redireciona o interesse do pesquisador para os autores menores e para os panfletos, na perquirição de “la guerre cachée” envolta pela penumbra da clandestinidade.[11]

Em uma época em que a autoria não se afigurava como uma preocupação central e em que todos liam o que estivesse ao alcance das mãos,[12] o caráter novo que emanava dos livros fez com que a censura provocasse a prática panfletária com o escopo de se evitar a retaliação, remetendo ao problema da circulação e das práticas de leitura:[13] enquanto “De l’esprit”, de Helvétius (1758), que se entusiasmava com as potencialidades da boa educação, causa um “scandale” que o obriga à retratação perante os censores – provocando, conseqüentemente, a curiosidade geral e o contrabando[14] – panfletos anticristãos,[15] irreligiosos e profundamente materialistas[16] conheciam profunda capilaridade entre os populares, fazendo com que Voltaire fosse lido não só nos salons dos philosophes e das salonnières, mas também nos cafés e nas praças.

Por outro lado, as Academias se tornam, no contexto das Províncias do reino, centros de conhecimento e de reflexão que, distantes da Corte e de Paris, negam a produção das Universidades, tornando-se focos da resistência burguesa contra abusos, iniqüidades, misérias materiais e intelectuais.[17]

A inconformidade, comunicada não apenas pelos panfletos, mas também pelos periódicos,[18] traduzia-se não propriamente como um ideal revolucionário, mas sim como um desejo de reforma. De crítica religiosa, filosófica ou literária, o debate passa a assumir também tons políticos, e mesmo os teatros se tornam espaços de contestação e de rebeldia.[19] A disseminação das “idéias novas” atravessa os “três estados” franceses em suas diversas estratificações sociais, e encontra espaço fecundo nas sociedades secretas, como a maçonaria.[20]

Assim, a “circularidade entre o alto e o baixo”, para usar a expressão de Carlo Guinzburg tributária a Bakhtin,[21] foi o foco das atenções de Mornet em sua obra: abordando a questão da heurística de natureza escrita para chegar ao leitor, à circulação e às práticas de leitura que conduziram à Revolução, inspirou os estudos de toda uma geração, da qual cabe destacar Roger Chartier.

3. Chartier: a quimera das origens e a opinião pública no contexto ilustração/revolução

Em Mornet, Chartier localiza o seguinte movimento de causalidade como uma questão mal colocada: as novas idéias descendem das mais cultivadas hostes burguesas, penetram do centro parisiense à Província e, finalmente, encontram a difusão geral, determinando, assim, a Revolução Francesa.[22]

Tomando a obra como ponto de partida, propõe-se a superar esta dificuldade recolocando o problema das origens “intelectuais” para as “culturais”, o que permitiria uma compreensão sobre a dinâmica da sociabilidade[23] e, desta forma, inverte a chave de inteligibilidade: a ilustração como construto revolucionário visando à sua legitimação.

Indo ainda além, ao buscar Alexis de Tocqueville, resgatado por François Furet, encontra a ossatura do pensamento ilustrado em pleno classicismo de Luis XIV – no que se destacam, por exemplo, as academias – que faria esboroar as próprias bases da monarquia absoluta; no lento tempo da longa duração, evidenciado em 1958 por Braudel,[24] um movimento dialético ignorado por Mornet se gestava: a eclosão às luzes minaria sua matriz.

Assim, a partir da obra “The structural transformation of the public sphere”, de Jürgen Habermas, e se aproximando de uma sociologia da cultura que envereda pelo terreno do simbólico, uma vez que o antigo regime engendra a sua negação, a dinâmica da análise de Chartier permite que se fale na formação de uma cultura política por oposição no contexto de um novo espaço público, apartado tanto da autoridade estatal como do círculo cortesão freqüentado pelos estamentos nobiliárquicos e clericais – e, uma vez delimitado o espaço do povo e da burguesia, que galgava autonomia de pensamento político e religioso, o campo da crítica passava a se afirmar como novo horizonte possível, simultaneamente à consciência da separação de um privado; de um indivíduo apto ao exercício da razão.[25]

O descompasso entre as luzes (ou o discurso coerente e homogêneo) e a revolução (ou as práticas dissonantes e heterogêneas) é a própria contradição designativa do iluminismo que gera o espaço diferenciado da opinião, formado por múltiplos privados livres de obrigações com o príncipe: cada qual, na defesa de seu interesse, encontra sua universalidade pelos livros – escritos e lidos – e contra a tradição, compondo a idéia de “república das letras”.[26]

A distinção entre discursos e práticas[27] permite que se pense na circulação dos documentos escritos – sejam livros ou panfletos – e, mais especificamente, nas relações entre o objeto impresso e a formação do público na França, conduzindo a pesquisa histórica a uma vereda rica e a ser explorada: uma vez que se toma o livro por acessível e, pois, profano e dessacralizado, permite-se a sua descartabilidade – pode agora ser passado de mão em mão.[28] O conhecimento, outrora limitado à Igreja secular e que, necessariamente, emanava do soberano, torna-se relativamente acessível àquele que saiba ler: o livro, que fica fisicamente menor,[29] a sociedade e a figura do rei perdem seu contorno sagrado por meio dos usos criativos da leitura.

4. Darnton: o submundo das letras ilustradas – um diálogo

A partir da reinvenção de Mornet por Chartier,[30] Darnton retoma a idéia do alto e baixo com a ressalva, central, de que o espaço público se constituiu em uma sociedade ainda não aberta ao conhecimento: o mundo burguês não recebe ou estimula o talento, imerso na mentalidade rígida do antigo regime.

O submundo, os “escreventes e rábulas”, e mesmos os letrados de uma “segunda geração” do iluminismo, atraídos pelo mundo anunciado por Voltaire e seus pares, ao partirem da Província à capital, vêem as portas fechadas; nem todos podem se atribuir a alcunha de philosophe como o bom Jean-Baptiste-Antoine Suard e participar de le monde.[31] Assim, a “cambulhada de subliteratos[32], criados nas profundezas do submundo intelectual, a exemplo de Marat, ressentida pelo desprezo da “despótica tirania das letras”, conduzem a revolução ao plano dos fatos.[33]

5. Encaminhamentos: a formação crítica e a astúcia da razão – a afirmação suprema do indivíduo[34]

Em artigo de 1997,[35] Jorge Grespan, ao tratar de aspectos da Filosofia do Esclarecimento[36] no século XVIII, buscando as origens da afirmação do direito do indivíduo a ser diferente, a romper com os elos de continuidade, encontra, no modo de se pensar a relação entre os costumes e a razão, duas tendências principais.

A primeira, partida da tensão entre a razão universalizante, plano do homem natural, e os costumes, convenções estabelecidas definidoras dos povos e das culturas, aceita a prevalência racional, conformando o despotismo esclarecido – persiste o direito individual de crítica, desde que circunscrita ao âmbito da obediência do súdito.[37] A segunda, partindo do mesmo ponto, envereda pelo direito de deposição do príncipe e considera o despotismo injustificável,[38] não mais balizando a razão como ruptura, mas como continuidade.[39]

Na medida em que recoloca a questão para além do problema da difusão das idéias, na perquirição da qualidade do saber difundido, indaga até que ponto o material escrito transpôs a barreira da informação/instrumentalização e cumpriu o “objetivo maior dos ‘filósofos’, isto é, a formação crítica do indivíduo que lhe garantiria a possibilidade de um julgamento autônomo dos fatos”, ou seja, a ter “opinião própria e autônoma”, o que parece inaugurar uma nova vertente de análise que, de princípio, é um posicionamento crítico: a instituição do direito à diferença, que possibilita romper com a tradição, aperfeiçoa uma nova tradição na medida em que a sociedade moderna, ao existir para o indivíduo, faz com que ele se sinta “livre e sujeito de sua própria história”. Na tradição hegeliana da “astúcia da razão”, “as injunções sociais praticamente desaparecem para melhor submeterem a si aqueles que dela se acham libertos; eis a sociedade ‘burguesa’ de Marx, mascarando as novas formas de exploração por trás da igualdade jurídica unilateral da sociedade civil”. [40]



[1] MORNET, Daniel, Les origins intellectuelles de la Révolution Française 1715-1787, disponível no site , acessado em 02 de novembro de 2007, 809 páginas.

[2] CHARTIER, Roger, The cultural origins of the French Revolution, parcialmente disponível no site , acessado em 04 de novembro de 2007, pp. 03-37 e 67-91.

[3] Para uma localização mais clara e precisa dos termos deste trabalho, na introdução, as datas de publicação das principais obras utilizadas estão apontadas entre parênteses depois dos nomes de seus respectivos autores, uma vez que nem sempre coincidem com as daquelas efetivamente consultadas.

[4] Como toda investigação historiográfica parece ser primordialmente um esforço metodológico, fundado em uma matriz teórica que presidirá toda a narrativa histórica (narrativa no sentido de eixo de inteligibilidade e não na acepção, em nosso juízo ligeiramente empobrecedora, que lhe dá, por exemplo, JENKINS, Keith, A história repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001), vale lembrar que, apesar de ora tratarmos de relações entre escrita e história, não se pretende, tanto por ausência de subsídios minimamente sólidos, como por não se tratar da discussão prenhe ao presente curso, ou mesmo por falta de tempo ou espaço, ingressar no eixo de reflexões suscitado Norman Hampson (HAMPSON, Norman, O iluminismo. Lisboa: Editora Ulisséia, 1973), ou, de modo ainda mais remoto, aquele suscitado por Hayden White e Dominick Lacapra sobre possibilidades e estratégias de abordagem da literatura por parte do historiador, atualmente muito em voga, (KRAMER, Lloyd S., “Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick Lacapra” In: HUNT, Lynn, A nova história cultural. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2ª edição, 2006, pp. 131-173).

[5] DARNTON, Robert, Boemia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 13-45.

[6] KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro: Editora da UERJ/Editora Contraponto, 1999, 254 p.

[7] BADINTER, Elisabeth, Émilie, Émilie – a ambição feminina no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra/ Editora Discurso Editorial/ Editora Duna Dueto, 1983, pp. 10-43.

[8] ROCHE, Daniel, O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Edusp, tradução Antonio de Pádua Danese, 2004. pp. 267-308.

[9] SECCO, Lincoln. “Biblioteca gramsciana: os livros da prisão de Antonio Gramsci”, In: Revista de História. São Paulo: EDUSP, nº 150, 1º/2004, pp. 209-228: “A História do livro e da leitura constituiu um campo de estudo de muitas possibilidades analíticas. Numa zona intermediária que une a História Social e a História Econômica, ela tem inspirado estudos sobre livrarias, livreiros, editoras, bibliotecas. É também um ramo fecundo para iluminar novas facetas da Revolução Francesa (por exemplo, os estudos de Robert Darnton), da História Cultural (Roger Chartier), da História Antiga (Luciano Cânfora e Guglielmo Cavallo). Desde o clássico de Daniel Mornet (As origens intelectuais da Revolução Francesa), foi possível ampliar muito o conhecimento das relações (nem sempre tão diretas) entre as luzes e a Revolução”.

[10]Les premiers conflits” (1715-1747), o período das grandes publicações, como l’Encyclopédie, e dos grandes conflitos de consciência, imediatamente posterior ao Tratado de Ültretch e no contexto da delicada doutrina do equilíbrio entre os Estados europeus, quando “(...) the identity of ‘Europe’ has always been uncertain and imprecise, a source of pride for some and hatred or contempt for others” (PADGEN, Anthony. “Europe: conceptualizing a Continent”, In: The idea of Europe – from antiquity to the European Union. Cambridge: Woodrow Wilson Center Press/ Cambridge University Press, 2002, pp. 33-54). O segundo período,“La lutte décisive” (1748-cerca de 1770), é o momento da difusão das idéias, de Paris à genericamente chamada “Province”, o “interior”. O derradeiro, “L’exploitation de la victoire” (cerca de 1771-1787), é o lugar temporal da ação em lugar fundada no debate que marcou os períodos anteriores.

[11] MORNET, Daniel. Idem, pp. 133-135. “La bataille qu’il voulait livrer a donc été, en grande partie, une bataille cachée (...) la méthode était bonne et il est tel de ces pamphlets dont on n’est pas sûr qu’il soit de Voltaire. A l’abri de cet anonymat il multi­plie les attaques (...) L’ironie voltairienne se fait âpre, brutale, insolente. L’influence fut immense”.

[12] ROCHE, Daniel. Op. Cit., pp. 268-270. Daniel Roche problematiza quem lê o quê, observando que o acesso à leitura é mediado por um acúmulo de privilégios culturais em uma época em que as comunicações visual e gestual próprias do campo e que predominaram no curso do antigo regime ainda predominam sobre o homo graphicus em gestação.

[13] A partir de anotação de aula.

[14]As obras proibidas têm um ‘apelo infalível’ que desperta a curiosidade das pessoas” – anotação de aula.

[15] MORNET, Daniel. Op. Cit., pp. 138. La Bible est un tissu d’absurdités, de grossièretés, d’immoralités”.

[16] Idem, pp. 138-139. “La vérité est que toutes les religions sont fausses, aussi bien les vagues croyances déistes que les dogmes les plus impérieux. D’Hol­bach est résolument matérialiste”. Conforme se denota do estudo de BADINTER, Elisabeth. Op. Cit., a irreligião fica chic: apesar do veredicto de Rousseau de que “a reivindicação de igualdade pretendida pela mulher em relação ao homem é destituída de sentido”, a ambição feminina conduz ao desejo fremente pelo conhecimento, produzindo, entre outros, dois efeitos de interesse para a afirmação de Mornet sobre a natureza destes panfletos. O primeiro caso, de Mme du Châtelet que, mesmo se proibindo de ser atéia, a exemplo de Voltaire, empreende “Le examen de la Bible” e seu “espírito exato se insurge contra a incoerência das lendas”, conduzindo-a, finalmente, à crença de que “tudo é falso na Escritura”. O segundo caso, mais caricatural, em parte devido à comédia de Molière, é o das “Preciosas”, entre as quais se destaca a Mme. De Rambouillet, para quem a “conversação é uma arte com regras”. Se, conforme os exemplos colhidos por Badinter, as mulheres dos salons duvidavam da doutrina oficial enquanto praticavam o ritual do espartilho, os panfletos revelam a mesma prática em outras camadas estratigráficas desta sociedade, quilômetros abaixo do território dominado por aqueles que se autodenominavam philosophes.

[17] MORNET, Daniel. Op. Cit., pp. 202. Il existe déjà au moins six de ces acadé­mies à la fin du XVIIe siècle et elles ne pensent évidemment pas à mettre en péril le trône ni l’autel. Mais le philosophisme s’y est peu à peu glissé et c’est par elles, pour une part, qu’il a pénétré dans la province. Leur rôle a été considérable”. A seguir, Mornet embasa sua afirmação com uma longa lista de Academias e de como, da liquidação do humanismo literário herdado da renascença, passou a apresentar uma feição que se pretendia científica e empirista.

[18] Os jornais, cuja circulação dependia de autorização do Estado francês, apresentavam-se extremamente prudentes, bem como imersos em um espírito ilustrado naturalmente conservador e tradicionalista. Mornet avalia que, justamente pela sua grande necessidade de cautela, que “rendent plus significatives toutes les transfor­mations qu’on peut saisir dans cette presse très surveillée et dans l’enseignement des collèges. En outre, même si ces transformations ne sont pas très profondes, elles prennent une grande importance par leur diffusion. Journaux et enseignement sont les deux plus puis­sants moyens de répandre les idées nouvelles”. Em seguida, explicita a sua grande multiplicação no curso do século, colocando em relevo o aumento da circulação e difusão de três deles: Mercure, Année Littéraire e Journal encyclopédique (Ibidem).

[19] Idem, pp. 352-361.

[20] Idem, pp. 504-547.

[21] GUINZBURG, Carlo, O queijo e os vermes – o cotidiano e as idéias de moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 11-13. “(...) Foi possível rastrear o complicado relacionamento de Menocchio com a cultura escrita, os livros (ou, mais precisamente, alguns dos livros) que leu e o modo como os leu (...) Em conseqüência uma investigação que, no início, girava em torno de um indivíduo (...) acabou desembocando numa hipótese geral sobre a cultura popular (...) da Europa pré-industrial, numa era marcada pela difusão da imprensa e a Reforma Protestante, bem como pela repressão a esta última nos países católicos. Pode-se ligar essa hipótese àquilo que foi proposto, em termos semelhantes, por Mikhail Bakhtin, e que é possível resumir no termo ‘circularidade’: entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo” – (grifos nossos).

[22] CHARTIER, Roger. Op. Cit., pp. 03-04. Mornet set up Enlightenment thought (…) as a necessary precondition for the final crisis of the old monarchy as it moved toward revolution”. Depois de localizar o caminho teleológico trilhado, realiza a crítica aos mitos de origem com o argumento de que a pretensa linearidade/totalidade, conforme levantado por Foucault na tradição de Nietzsche, remete a um eixo infinito de causalidades que passa ao largo das rupturas e das descontinuidades, conformando um curso mecânico, linear, contínuo e, por que não, progressivo dos acontecimentos. Também Marc Bloch faria a crítica em sua obra inacabada de 1944, da qual se seleciona um breve trecho: BLOCH, Marc, Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp. 56-58 et 60. “A palavra origens (...) é preocupante, pois equivoca (…) Será que (…) por origens entende-se as causas? (...) entre os dois sentidos freqüentemente se constitui uma contaminação tão temível que não é em geral muito claramente sentida. Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar. Aí mora a ambigüidade; aí mora o perigo”. E arremata da forma mais pedagógica possível: “Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento (...) O provérbio árabe disse antes de nós: Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais’. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito”.

[23] Idem., p. 05. (…) that is denied them by an analysis like Mornet’s that considers them only from the point of view of the ideology that they contain or transmit”.

[24] Apesar de a fundação da revista dos Annales se localizar cronologicamente em 1929 e da obra “La Méditeranée...” remontar a 1949, toma-se como marco a publicação do artigo “Histoire et sciences sociales: la longue durée”.

[25] Idem, Passim et pp. 20-22. “Habermas stated his thesis clearly: at the heart of the century (…) there appeared a ‘politic public sphere’ which he also called ‘a public sphere in the political realm’ or a ‘bourgeois public sphere’. Politically this sphere defined a space for discussion and exchange removed from the sway of the state (…) and critical of the acts or the foundation of state power”.

[26] Idem, pp. 23-24. “The exercise of public reason by private individuals was to be subject to no limit, and no domain was to be forbidden (…) The new political public sphere brought on the disappearance of the division instituted by Descartes between obligatory credences and obediences, on the one hand, and, on the other, opinions that could legitimately be subjected to doubt ”.

[27] Em outro texto de sua autoria, Chartier evidencia o desprendimento do escrito de seu produtor por meio da apropriação por parte do leitor (assim como a circulação, a apropriação integra o terreno das práticas). CHARTIER, Roger. “Texto, impressão, leituras” In: HUNT, Lynn, A nova história cultural. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2ª edição, 2006, pp. 211-238: “Ler é entendido como uma ‘apropriação’ do texto, tanto por concretizar o potencial semântico do mesmo quanto por criar uma mediação para o conhecimento do eu através da compreensão do texto”. Para uma apreciação panorâmica da evolução do debate travado entre lingüistas, semiólogos, historiadores e paleógrafos, cf. CASTILLO GÓMEZ, Antonio, “La Corte de Cadmo – apuntes para una historia social de la Cultura escrita”, Revista de historiografia, (?), nº 03, II, edição de 02/2005, pp. 18-27.

[28] Resta bastante evidenciado o quanto, a partir da década de 1970, Roger Chartier (acompanhado de Daniel Roche, p. ex.) passa a ter por objetivo captar o que uma sociedade inteira lê ou escreve, o que implica nas novas necessidades metodológicas, mas, ao mesmo tempo, na superação da história do livro e o início de uma espécie de história da leitura, que compreenda maneiras de ler e apropriações pelos leitores e ouvintes.

[29] Definição do conteúdo específico da apropriação e busca de uma reconstrução da leitura a ser interpretada na criação e na recepção: “a forma entranha um ato de comunicação” (CASTILLO GÓMEZ, Antonio, Op. Cit.). É uma clara rejeição ao que se convencionou chamar de “novo criticismo” de Saussure, que analisa um sistema de categorias permanentes e sincrônico, pretendendo uma criação de sentido desvinculado da intenção e da subjetividade – funcionamento lingüístico automático e impessoal estruturalista.

[30] Expressão oriunda de anotação de aula.

[31] A obra, de 1982, segue a tradição de contar a história dos vencidos mediante a desconstrução de verdades estabelecidas e revela algumas das dificuldades da relação entre as grandes idéias e a “ilustração subterrânea” (anotação de aula).

[32] DARNTON, Robert. Op. Cit., pp. 26-27 “Talvez o mundo literário tenha sempre se dividido hierarquicamente, tendo no vértice um monde de mandarins e, na base, a boemia literária (...) Mas as condições sociais e econômicas do Alto Iluminismo cavaram um fosso incomum entre os dois grupos nos últimos vinte e cinco anos do Ancien Régime. Este distanciamento (...) revelará algo sobre umas das questões clássicas propostas pela era pré-revolucionária: qual foi a relação entre o Iluminismo e a Revolução?”.

[33] Idem. Passim. O ódio à política de privilégios do antigo regime, o rancor que encontra não o talento como critério, mas o recurso aos “velhos expedientes” espúrios, a desigualdade geradora de tensões: a igualdade da razão ainda se regia pelas rígidas regras da corte: “Nas últimas décadas do Ancien Régime, o salão cada vez mais se tornava reduto dos philosophes do Alto Iluminismo, que abandonavam os cafés às espécies inferiores de litérateur. O café era uma antítese do salon”.

[34] Breve consideração anterior aos encaminhamentos finais deve ser feita quanto à obra-chave de Koselleck (KOSELLECK, Reinhart. Op. Cit. Passim), para quem, devido à censura, a opinião pública existia somente nos clubes, cafés e salões (contexto no qual deve ser colocado o conceito de lei filosófica como opinião, no sentido dado por Locke). Este é o segundo domínio, apartado do Estado: a instância da lei moral dos cidadãos que circunscreve a crítica – semelhante à estratégia maçônica, que tem por escopo a racionalidade como instrumento para a felicidade comum.

[35] GRESPAN, Jorge, “O esclarecimento: ruptura ou tradição”, In: Revista de História. São Paulo: EDUSP, nº 136, 1º/1997, pp. 101-105.

[36] Tradução usada por Jorge Grespan para Aufklãrung, “nome de batismo alemão” (Ibidem).

[37] Ibidem. “O argumento do qual se deduz o elogio kantiano é interessantíssimo: ‘somente aquele que, sendo ele próprio esclarecido, não tem medo de sombras, e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: “raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei!”’”. Neste sentido se compreende a formalidade do direito: se o foro íntimo é o lugar da liberdade e da opinião, quanto mais forte é o Estado, maior o garantismo aos direitos individuais – a força é o princípio da afirmação da razão de Estado. Grespan percorre o caminho que levou ao “refinamento”, da Noblesse d’Épée à Noblesse de Robe, para responder, em parte, por que os esclarecidos escolheram este lugar para difundir suas idéias, e, sobretudo, por que seus freqüentadores, receptores calorosos das luzes e das críticas, não ousaram contestar diretamente o poder real, entrincheirando-se nos salons.

[38] Ibidem. “Como diz Montesquieu, em uma de suas Cartas Persas: ‘deve-se mudar a lei pela lei, e o costume pelo costume’; em outras palavras, não se pode mudar um costume através de uma lei, como recomendavam os adeptos do ‘Despotismo Esclarecido’, e sim através da educação, retomando então o projeto geral da Enciclopédia”.

[39] Na primeira vertente, como os costumes nem sempre são adequados à razão, pois superstições ou falsas crenças, o monarca esclarecido deve impor a sua razão para civilizar o irracional: a raison do déspota é legitimada pela finalidade modernizante que só ele conhece, rompendo com o costume envolto em sombras. Já na segunda vertente, “(...) a razão não aparece como ruptura com a tradição, do direito costumeiro, e sim como sua confirmação. Na crítica liberal, o Absolutismo significa uma violação da lei consuetudinária, dos costumes legítimos de um povo arbitrariamente desdenhados pela vontade caprichosa de um tirano (...) Daí que, como observa Habermas (1963), a concepção clássica de ‘revolução’, pretenda antes um retorno à tradição do que uma ruptura em relação a ela (...) [mas] a crítica implica já uma ruptura” – (Ibidem).

[40] Ibidem.

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