sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O paradigma indiciário, ou a paisagem em que se habita




É já célebre a asserção de Ginzburg sobre os caçadores. Três homens espreitam em um bosque denso. O maior deles observa uma lança partida ao meio e o mato batido. Fareja cheiro de sangue. Reflete sobre a altura dos galhos quebrados. A história está prestes a ser contada a partir da articulação das pistas mudas: o caçador relata aos outros dois a recente passagem de um alce ferido.

A procedimento semelhante se prestam o médico, o juiz, o detetive, o psicanalista ou o adivinho: todos eles, cada qual a seu modo (por seus métodos) e movidos por diferentes finalidades ou propósitos, buscam positivar um acontecimento (uma história) de forma a conformar uma realidade que se pretenda minimamente objetiva.

Bebem, porém, de fontes que, por sua natureza inescapável, memorizaram (representaram, reduziram, deram suporte a) eventos a partir de sua própria e particularíssima percepção subjetiva. Estão dispostas, ainda, de uma determinada maneira (em uma paisagem). Como, então, interpretá-las (julgá-las) de maneira a recompô-las objetivamente se sua totalidade foi perdida nos desvãos da memória e o que se tem à mão são fragmentos (de objetos e de representações)?

Pioremos ainda mais nosso problema: nosso caçador mais alto, CSI do neolítico, resolve registrar o que viu nas paredes de uma caverna e, anos depois, o registro será descoberto (e interpretado) por uma criança. Logo depois, por um fervoroso seguidor de Cristo. Logo depois, por um renomado arqueólogo. Logo depois, por um bandido, caçador de tesouros. Cada um deles, a seu modo (por seus métodos) chegará a diferentes conclusões – estará alguma delas realmente incorreta? Seu repertório material foi o mesmo.

Tornemos isso tudo mais claro (obscuro): houve um assassinato. Proponho, com base no que acabamos de conversar, que você tente descobrir não apenas o assassino e os motivos que o levaram a cometer tão nefasto crime, mas, sobretudo, por que se buscou contar a história da maneira como foi contada.


Primeiro assassinato: Mother (2009)


Este filme foi tra(du)zido para o Brasil com o subtítulo A busca pela verdade. Depois de dirigir O Hospedeiro, Bong Joon-ho parece ter ficado ao lado de outros diretores sul-coreanos interessantes como Park Chan-wook (Oldboy), exóticos como Kim Ki-duk (O arco), ou mais difíceis de encontrar no Brasil como Jang Sun-woo (Resurrection of the Little Match Girl) – a tempo: Wong Kar-wai é de Hong Kong.

Do-joon padece de dificuldades para interagir com o mundo e vive com sua mãe em uma sufocante relação de dependência que, em alguns momentos, flerta com uma ingênua e sutil incestuosidade.

Uma garota foi assassinada na cidade provinciana e os policiais, ao interpretarem as pistas (os traços materiais) – uma pedra ensangüentada, um corpo sem vida – concluem rapidamente que o assassino teria sido Do-joon, presente na cena no momento do crime, na paisagem construída, e o prendem (indiciam, inventariam). Realizam uma reconstituição atrapalhada, teatralizada do homicídio. As fontes orais são escassas e não se revelam até o momento propício – para então se calarem.

Inoportuna, sua mãe comparece à cerimônia religiosa organizada pelos parentes da vítima e afirma a inocência de seu filho. Não porta provas, não demonstra uma narrativa alternativa coerente. Diante de uma afirmação sem compostura lógica as mulheres convulsionam; a cena é catártica.

Busca um advogado, perito nas artes da retórica, em desenredar eventos confusos (profusos) e dar vida às imagens mortas do passado, mas é em vão, os interesses do profissional se assentam em outros campos que não a busca da narrativa (um processamento, uma técnica) como instrumento de persuasão.

O filme trata da idéia da descoberta, da busca por uma reconstituição dos fatos que culminaram com o assassinato da garota, na perquirição dos atores e objetos envolvidos (da escrita da história). É quase hitchcockiano, assustador, e ao mesmo tempo cômico – um riso persistente que subsiste ao suspense. A atriz, ao construir a personagem inconveniente, hipnotiza. A personagem, ao percorrer o caminho, modifica-se.

Ao final, um assassino oculto se revela – inesperado, insuportável. A mãe recompõe, enfim, os eventos do crime e é possível supor que os acontecimentos a tenham obrigado também a reconstituir o curso de seu relacionamento com Do-joon, seu estar-no-mundo.

O motor da construção da narrativa é o compromisso com a inocência do filho, o que conduz a personagem (autora) a uma seleção criteriosa e severa (sanguinária) das fontes.

 Segundo assassinato: Rashōmon (1950)

Baseado em uma história japonesa registrada provavelmente entre os séculos VIII e XII, e que compõe o Konjaku Monogatarishū, o sempre jovem escritor Ryūnosuke Akutagawa, em 1914, então com 22 anos, escreveu o conto Rashōmon e, em 1922, o conto Dentro de um bosque, que narra sete diferentes versões labirínticas para o assassinato de um samurai.

Anos depois, sua obra inspiraria um dos filmes mais ricos, marcantes e incríveis de Kurosawa e uma das melhores atuações da carreira do excelente ator Toshiro Mifune, no papel do ladrão Tajomaru.

Conta um lenhador, perante a autoridade de sua aldeia, que encontrou na floresta, três dias antes, o corpo enrijecido de um samurai. Em seguida, um homem apresenta o ladrão e suposto assassino amarrado a si: encontrou-o contorcendo-se, jogado ao chão pelo cavalo. A partir deste ponto, três depoimentos se sucedem.

Tajomaru, o acusado, relata à autoridade que o samurai passou diante de si com sua bela mulher. Inebriado pelo olhar da jovem, atraiu seu contendor para longe com um ardil e o imobilizou. O ladrão mostra a ela o que fez com seu marido, para humilhá-lo. Determinada, ela tenta em vão ferir o gatuno, mas logo acaba cedendo e se entrega a seus braços. Em seguida, roga para que duelem: seguirá com aquele que prevalecer, mas foge logo depois do assassinato.

O depoimento seguinte é o da jovem: afirma ter sido violentada por Tajomaru, que fugiu em seguida. Aturdida, abraça seu marido, que segue impassível; entende o olhar do samurai e se desespera, mas entrega-lhe a adaga para que se suicide. Depois da morte dele, ainda tentou tirar a própria vida, porém sem êxito.

Em seguida, o falecido depõe por meio de um médium. Narra que, depois de violentar sua mulher, o bandido tentou convencê-la a seguir com ele, ao que ela assentiu, e mais: rogou, traidora, para que tirasse a vida de seu marido. O morto conta que até mesmo o ladrão censurou o pedido da jovem e perguntou a ele se queria que a matasse. Ela foge e Tajomaru corre em seu encalço. Já desamarrado, o falecido enterra uma adaga em seu próprio peito.

Longe da autoridade, o Lenhador confessaria que não encontrou o samurai já morto; escondido, viu o ladrão, depois de saciado, pedir à moça para que seguisse consigo. Ela exige que duelem por ela, mas o marido é um covarde e se recusa a lutar – o bandido, sem um pingo de coragem, vence mais por sorte do que por habilidade, depois de um duelo extremamente cômico e atrapalhado, e ela então foge.

Conforme apontou com acuidade Francisco Murari Pires, cada um dos personagens (autores) articula o eixo dos acontecimentos de modo que a honra, e não a verdade, presida a narrativa: Tajomaru se afirma como exímio duelista, a jovem afirma que seu marido se suicidou por não suportar vê-la violentada, o morto, senhor de si, tirou a própria vida, e o lenhador ocultou em suas duas versões ter aguardado tudo terminar sem intervir para então furtar as armas deixadas para trás.

Conte a história, Sherlock

 Ryūnosuke Akutagawa
O famoso detetive estaria corretíssimo ao recordar sempre a Watson ser tudo muito elementar: a história é composta por fragmentos, por escolhas (a memória se perde na poeira escavada).

Uma lança partida ao meio (um objeto, testemunho de um poder). O mato batido, os galhos quebrados (uma paisagem, uma abstração do entorno). Cheiro de sangue (uma percepção dos sentidos). Juras de amor assumidas com a verdade – sem ironias, o compromisso do historiador é (deve ser) real, sob pena de que o relato seja condenado ao mundo da ficção ou do ceticismo relativista. Tanto melhor (e mais belo) o exercício se sacramentado por um método, abençoado por um suporte teórico.

Recompõe-se (constrói-se) a paisagem, nela são dispostos os objetos selecionados. Alocam-se os verbos que relatarão a ação ocorrida no transcurso do tempo (recorte), escolhidos a dedo. Rebobina-se a cena, já editada. Conta-se uma história, publica-se, registra-se o acontecimento. De volta ao torvelinho da memória.