terça-feira, 15 de novembro de 2011

Herzog e a caverna dos sonhos esquecidos



"E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?" - Diálogo entre Sócrates e Glauco (Platão. A República. Livro VII)


Assisti a este documentário em duas versões: primeiro pelo modo convencional, em 2D, direto do meu notebook, e, depois, em 3D, em uma boa sala de cinema. É outro filme. Finalmente descobri que o 3D pode ser realmente uma linguagem relevante para o cinema (não é um acessório ou um enfeite neste caso, mas um instrumento). Sem querer me alongar, na primeira cena dentro da caverna caiu meu queixo. A imagem toca, emociona.

Pelo desenvolvimento do registro, suspeito que a intenção inicial do diretor teria sido fazer um documentário sobre pinturas rupestres em geral e filmar as cavernas de Lascaux, mas, quando descobriu que isto não seria possível, resolveu focar suas lentes afiadas (lascadas) no complexo descoberto por Jean-Marie Chauvet, às margens do rio Ardèche, no sul da França.

As limitações de registro são evidentes: os gases tóxicos da caverna permitiam a permanência da equipe apenas uma hora por dia, e desde que não ultrapassassem o limite físico da passarela metálica de 60 cm instalada para possibilitar a caminhada (necessariamente em fila) dos exploradores-cineastas, de modo a comprometer o mínimo possível a preservação.

Talvez estas dificuldades da etapa de produção justifiquem os grandes saltos para os Alpes suevos da Alemanha. Conversei com amigos que sequer perceberam que Herzog havia filmado em mais de uma caverna. Mas, ainda que o recorte escolhido seja de alguma forma questionável, o tema não. As profundezas da terra exercem um verdadeiro fascínio sobre qualquer ser humano: os perigos e as aventuras de Julio Verne, os anões mineradores de Tolkien, a espiritualidade das embriagadas e embriagantes pítias de Apolo e os desabamentos impiedosos da Pachamama; tudo o que há de mais primitivo e espiritual vem à tona ao deslizarmos à escuridão sem fim das fendas da caverna.

Conforme o argumento se desenvolve, o olhar aguçado do historiador, do arqueólogo, acaba cheirando o perigo do anacronismo, das generalizações, e isto é sim um incômodo, uma pedra no sapato que perdura ao longo do filme, que faz perguntar, por exemplo, por que estaria ali um deslocado perfumista no lugar de um profissional da área. Incomodam as perguntas feitas ao jovem pesquisador Julien Monney, as ausências. Existe ali algo que se perde, uma profundidade que poderia ter sido explorada.

Como foram feitas aquelas pinturas paleolíticas? Por quem? Com qual material? Fala-se no neanderthal (e a sua incapacidade simbólica), fala-se no cro-magnon, no sapiens-sapiens, mas qual a relação entre eles? Eles interagiriam, digladiavam-se? Por que o sapiens não representa o neanderthal em suas pinturas? Será indiferente à sua existência? Ou ele se vê como superior, ou como igual? Que lugar seria este?

Um homem se veste como se vestiria alguém àquela época: causa incômodo a teatralização da história, tão própria dos “museus de artes naturais”. Para piorar, o homem toca, com a flauta reconstituída, o hino norte-americano, o que causa outro desconforto: desejaria constatar o domínio das notas da escala musical que permitiria a execução de uma música contemporânea conhecida de todos nós? Desejaria apenas fazer uma piada? Qual a intenção da indulgência da edição ao manter a tomada?

E por que chamar de pré-história se de fato há história (há ali uma narrativa, uma história)? E como o governo deve lidar com a descoberta? Quais os limites entre a pesquisa e a preservação? Quais as diferenças do olhar entre o biólogo, o espeleólogo, o arqueólogo, o turista, o geólogo, o antropólogo, o botânico, o zoólogo ao lidar com a descoberta? Construir um duplo da caverna ao lado dela? E aquele final, o que era aquilo? Filmar uma usina nuclear, uma estufa com espécimes albinos, sugerindo uma alteração evolutiva? Não estaria a narração em voice-over do diretor exageradamente dramática?

Independentemente de como se responda a estas perguntas, é uma obra importante para o cinema, sobretudo pela forma, que é particularmente importante nesse filme, e o diretor traz isso para a discussão. Sob este ângulo, a análise cresce, porque o olhar aqui é o do cineasta. Sua preocupação é com a construção da linguagem, e aqui ele parece ser exímio.

Primeiro ponto, evidente: é um filme em 3D. E se justifica? Sim, basta ver em 2D e depois no cinema. É possível quase esbarrar nas pontiagudas estalagtites e sentir a claustrofobia, a textura da rocha, a quase-aflição do soterrado vivo pelo peso da história e da natureza. Vendo pelo meu notebook, não tinha sequer percebido que o painel dos cavalos tem um declive daquele tamanho. O desenho acompanha a estrutura tridimensional das paredes, tornando relevante a profundidade e alterando os pontos de fuga em uma complexidade graciosa, quase instintiva – e praticamente imperceptível pela projeção indiciária permitida pela dupla dimensão da linguagem convencional. A Vênus coberta pelo Minotauro (única figura humana desenhada na caverna) só fui entender vendo no cinema. A linguagem traz algo próximo da experiência do vivido (falando chato: produz a tal da catarse).

Em segundo lugar: busca inovar na experiência sensorial (acresce à fantasmagoria cinematográfica). O que eu quero dizer com isso: o que antes era apenas a experimentação do 2D ganha profundidade. Ok, mas não é só isso. Ele pergunta: e se fosse possível ir mais além? E se o realizador pudesse acessar outros sentidos do aparelho sensorial do espectador? Se fosse possível ao cineasta dar a conhecer a seu público a corrente de ar frio vinda das rochas que permitiu a três homens adivinharem a existência de uma galeria subterrânea em dezembro de 1994? Aqui é possível dar relevância à presença do perfumista. Qual o cheiro da caverna? Ar preso há milhares de anos, gases tóxicos das plantas subterrâneas, ossadas, fogueiras apagadas, terra úmida? E os barulhos? Que música produziam e ouviam do instrumento de sopro? Cantariam aqueles homens? Gritavam, urravam, gemiam, ganiam? Bateriam palmas? Estalariam a língua contra o palato? E o tato? O calor e o frio? O torpor? E o gosto desta água, podre, ferrosa, envelhecida?

Em terceiro lugar, a construção da obra como problema, e não como dado. A inovação é evidente já fora da caverna. Quando assisti pela primeira vez, como muitos, fiquei pensando como ele teria filmado o primeiro plano-seqüência do “arco do triunfo” natural esculpido na rocha pela erosão e cravado no penhasco no desfiladeiro de Ardèche.

Ao reparar na trepidação, conclui que seria um elaborado sistema de cordas, roldanas e polias, por meio de um sistema de rapel que içasse a câmera, pois grua alguma seria capaz daquilo. Estava errado, evidentemente. Ele faz questão de mostrar isso. E como filmar dentro de uma caverna, com todas as limitações que lhe são inerentes? Com todas as dificuldades? Onde colocar a equipe de filmagem? Ele retira o glamour da cadeira do diretor e registra a "mão na massa", como se nos dissesse: veja, isso não apareceu do nada, alguém veio e fez isso. Este filme, estas pinturas. De outro lado, trata-se, a olhos modernos, de uma galeria de arte permanentemente fechada ao público: a tarefa do cineasta como dar a conhecer, tornar evidente e vivo cresce como um dos motores da narrativa.

Em quarto lugar, o papel da iluminação. A luz trepida e não se fixa porque quer experimentar a trepidação de uma fogueira. Os painéis de LED (três painéis planos de luz fria alimentados por cintos de baterias) buscam simular a visão das figuras para o homem que já não está mais ali. Em sua dança imprevisível, o fogo esconde e dá a ver momentos diferentes da representação pictográfica: ora se vê uma perna do bisão, ora outra - o bisão corre. Talvez alguém narrasse uma caçada mítica, heróica (um sonho hoje já esquecido) aos seus consortes.

Talvez outro alguém batesse as pedras para imitar (representar) os cascos se chocando com o chão, enquanto outro cantasse, enquanto outros assistissem, espectadores. Um protocinema? Ou um cinema muito mais sofisticado do que o nosso, pelo sem-número de experiências que dá a conhecer? Nós tentamos simular profundidade, cheiro, cor, imagem, som, tato. O deles já tinha tudo isto. A concepção central de frames persiste mesmo na era digital. Tal qual o símio que arremessa para cima o instrumento, que se transforma em uma espaçonave no “2001” de Kubrick, questiona-se a própria idéia de progresso ao mesmo tempo em que a reafirma.

Para quem não é de São Paulo, o filme estreou por aqui no contexto da 35ª Mostra Internacional de Cinema, que teve como tema de abertura justamente o Piteco do Maurício de Souza projetando imagens e a ilusão de movimento nas paredes de uma caverna. Nada mais apropriado.

Em quinto lugar, como desdobramento dos parágrafos acima (e muito mais poderia ser dito), a presença do mito platônico como indício da realidade inapreensível; de outro lado, a caverna como figura de linguagem para a sala de projeção, a fogueira como projetor que nos permite o acesso àquilo que, de outra forma, seria inalcançável. Nós somos unidos ao homem que viveu há trinta e dois mil anos: juntos a ele, assistimos, estarrecidos, à maravilha (mirabilia) da pintura. Falamos de nossos mitos vivos e perdidos, de nosso cotidiano e de nossos ancestrais. Assistimos, perplexos, a uma inovação técnica de nossa era. Tal qual o par de crocodilos, observamos a nosso outro (ao nosso igual) como se olhássemos a um espelho.


Links relacionados:

Matéria no The Guardian

Crítica do Luiz Zanin

Nuevas tendencias formales del cine documental en el siglo XXI (El ojo que piensa)


domingo, 13 de novembro de 2011

Uma separação: Jodaeiye Nader az Simin, de Asghar Farhadi




A 35ª Mostra Internacional de cinema de São Paulo, aberta sob a notícia da morte de seu fundador, o crítico Leon Cakoff, realizou uma justa homenagem a Sergei Paradjanov – preso sob Stalin, Brejnev e Andropov – e também a Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar e a não fazer filmes pelos próximos 20 anos, e contou com a presença do cineasta Mohsen Makhmalbaf, diretor, entre outros, de “Um instante de inocência” (1996).

A Mostra exibiu a obra “Olhando Espelhos”, de Negar Azarbayjani (2011), que narra a história de uma taxista e uma transexual no país pós-revolução islâmica. Tanto o filme de Azarbayjani como “A separação”, de Asghar Farhadi (2011), são, evidentemente, filmes de oposição, mas nenhum deles se chocou de frente contra as fraudes nas eleições de 2009 que elegeram Mahmoud Ahmadinejad como fez Panahi, ou desobedeceu à ordem judicial de não fazer filmes por 20 anos como o co-diretor de “Isto não é um filme” (2011), Mojtaba Mirtahmasb, que sofreu apuros para levar o não-filme  a Cannes.

Em fevereiro, logo depois de o júri de Isabella Rossellini  premiar “A separação” com o prêmio máximo da Berlinale, Farhadi fez votos para que terminasse bem o impasse em torno da prisão de Panahi. O Urso de Ouro trouxe consigo, portanto, a dimensão de uma ausência – ou de um exílio, tão presente na obra premiada e impresso, com suas peculiaridades, em outros artistas do Irã pós-revolução.

Apenas para ficar entre os casos mais conhecidos no Ocidente, Marjane Satrapi, autora de “Persépolis” (2007), iraniana, exilou-se em Viena e hoje vive na França. A história do filme “Cópia fiel”, de Abbas Kiarostami (2010), nascido clássico, passa-se predominantemente na Itália, com atores franceses, sendo o diretor um dos únicos que continuaram em Teerã depois da Revolução de 1979. Como lembra Jorge Furtado, Mohsen Makhmalbaf e sua filha deixaram o país depois de um atentado a bomba e hoje vivem escondidos e em segredo; seus familiares são perseguidos e ameaçados de morte. A atriz Marzieh Vafahmer foi condenada a um ano de prisão e a sofrer 90 chicotadas por participar do filme “Minha Teerã à venda”, de Granaz Moussavi (2011).

Este breve contexto nos fornece alguns subsídios mínimos que nos permitem passar à leitura do filme de Asghar Farhadi.

Em primeiro lugar, a culpa, em seus mais diversos sentidos, é uma articulação importante que ganha destaque ao encontrar, como pano de fundo, a negativa à presunção de inocência, tanto no plano institucional (ao nos defrontarmos com um sistema inquisitivo baseado na cultura do inimigo, em que a negativa dos direitos fundamentais é a regra e a liberdade é a exceção), como no plano das relações (mutuamente acusativas e hostis).

Os fatos que compõem a narrativa são construídos a priori pelos personagens a partir de suas próprias aspirações e conveniências. O espectador presencia a construção das diferentes versões e, ainda assim, não consegue se desemaranhar da teia de contradições e dilemas. É como se Farhadi pedisse gentilmente, por meio da linguagem cinematográfica, para que admitamos estar no (desagradável, porém seguro) papel de julgadores, que não somos inocentes nesta obra, tampouco objetivos ou desinteressados: ao utilizar a perspectiva subjetiva do magistrado, faz com que aquelas pessoas encarem diretamente os nossos olhos e somos tentados a indagar silenciosamente: quem será o culpado diante de mim?

Estamos no contexto da separação matrimonial, mas também entre inúmeras rupturas, que transcendem em muito o caso privado do marido e da esposa. A causa do rompimento está presente durante todo o filme, mas não pode ser dita. Simin questiona como educará Termeh, sua filha, em um país nesta situação. Qual situação? Ela emudece diante do juiz. Mas, se a discussão é muito mais ampla do que um divórcio banal, é justamente no turbilhão de subjetividades doméstico que Farhadi conta a sua história, impedindo, de maneira perspicaz, o distanciamento que talvez auxiliasse o espectador a alcançar uma pretensa depuração objetiva do ocorrido. O observador é posicionado ali na sala da casa, entre uma crise conjugal, um velho doente, uma criança sensível e um mundo de dilemas morais.

Há um atordoamento e uma dificuldade (talvez impossibilidade) de se resolver o problema que se coloca, e estamos diante de uma sociedade em crise, convulsionada. O espectador parece olhar através da doença do pai, perdendo em objetividade e racionalidade e, sempre que busca se posicionar como juiz e sentenciar, encontra-se diante de paradoxos e contradições praticamente intransponíveis. A cada movimento em falso de uma das “partes” (trata-se, sobretudo, de um julgamento), a outra também revela seu quinhão de culpa, e é retomado um equilíbrio insuportável. Afirma-se a todo o momento: ambas as partes são culpadas – o espectador concorda. Então seriam ambas inocentes? Não neste filme de Farhadi; não na Teerã de 2011.

Assim como no Rashomon de Kurosawa, estamos diante de diferentes versões, construídas por cada um dos personagens, que não podem dialogar entre si justamente porque partem de premissas diferentes, de critérios diferentes e, sobretudo, de compromissos diferentes: ora a peça-motriz é a honra, ora a fé e o sectarismo religioso, ora a lógica processual inquisitória iraniana, ora o mero oportunismo. Nenhum dos personagens-autores busca construir sua história tendo como compromisso a verdade; sequer o juiz-acusador, voltado ao formalismo e à realidade processual do sistema jurídico do seu país.

Quase ao final do filme, quando Razieh é instada a jurar sobre o Corão, o critério moral se choca com o compromisso religioso, que prevalece. O marido pede para que ela mantenha a história, negligenciando a verdade que parecia perseguir com determinação cega, pois trabalha a partir da honra: argumenta que sairia humilhado caso não prosseguisse com o juramento. Sua honestidade é desconstruída, assim como foi a de Nader, o acusado. Por fim, ao se dar conta do impasse instaurado, reage com a brutalidade que conhece, pois não há uma solução racional que dê conta da situação ou que a resolva por inteiro de maneira satisfatória.

Pelos olhos de Termeh, a filha do casal que se separa, percebemos algo que se perde: não apenas os laços com a unidade dos pais, do ambiente privado da casa, mas a própria perda da inocência – individual ou coletiva. Volta-se finalmente ao processo inicial, muito mais íntimo do que aquele movido por Razieh: o divórcio entre Nader e Simin. Determina-se que caberá a Termeh decidir com qual dos dois deverá ficar. Independentemente do resultado e da sentença dos julgadores, o peso da decisão sobre este emaranhado indecifrável em que o Irã se encontra é impiedosamente deixado nas mãos da próxima geração.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Philip Roth: sou Portnoy, seu puto?



Era para comprar Indignation e American Pastoral, do Philip Roth, e só, mas veio junto um Complexo de Portnoy – o diagnóstico, pois a doença era pregressa conforme constatei nos quatro dias seguintes. Li as primeiras páginas e veja lá: aquele pobre diabo sou eu, ele está falando de mim ali, sem nunca ter me conhecido!

Não sou judeu, não sabia o que era uma shikse, nem que eu tinha um putz, mas muito da vida dele, das coisas que aconteceram com ele são, sabe, minhas. Minha mãe também é a personagem mais inesquecível que eu já conheci e, adivinhe só, tal como para ele, isto não é um elogio. Nunca fiz terapia, mas acabei participando de uma longa sessão privada pela vida de outro homem, de outro advogado (Alex Portnoy é um advogado também! Filho da puta!).

Eu poderia passar horas falando sobre o quanto temos em comum, eu e aquele judeuzinho, horas, meus segredos!

Uma vez eu estava em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, num quarto de hotel com meu avô, um calor terrível, tinha uns sete anos, e ele saiu do banho. Eu acabei vendo o shlong dele. Sabe o que é um shlong? Ele não é judeu, mas tinha um. Imagine uma mangueira de incêndio enrolada com aquele negócio pendurado. Embaixo, “um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída”. A lembrança é minha, mas o testemunho é o de um Portnoy! Eu tive que abrir aspas pra ele falar o que eu vi! Ele estava lá também, irritado com os mosquitos? Onde??

Minha mãe me ligou no mesmo dia e, meu deus como é sábia essa mulher, perguntou se eu estava lavando direito o meu pipizinho. Nesse dia em que eu descobri que queria ter um shlong também! Terá ela lido esse livro? Eu terei sido um experimento, uma espécie de camundongo sociológico dessa pessoa inesquecível? Para Alex, a mãe mandava fazer um bom pi, enquanto que ele queria mijar “uma torrente de urina espessa e forte como uma corda” e, para mim, me mandavam lavar direito o negocinho – e justo neste dia! Não cheira a conspiração?

Eu poderia passar horas, como disse. As banalidades, a obsessão dele, as dúvidas, a culpa... A culpa! Essa incendiária que a todo momento me chama, confundindo meu nome: Rodion Raskólnikov, eu sei o que você fez, seu bandidinho! Não me chamo assim, respondo, cobrindo o rosto com o edredom, virando na cama para o outro lado. E a resposta dela? Não seja respondão, Gregório Samsa, não fale assim comigo, aqui vai mais um pouco de Baygon nas suas antenas sujas, seu garotinho malvado, e não reclame porque isso dói muito mais em mim do que em você!

Macaca é um espetáculo à parte, um bônus, um personagem marcante e tão bem construído a ponto de não se saber o que sentir por ela. Exuberante na cama e ignorante – ignorante mesmo, não daquelas que ficam entediadas com uma cena de filme com mais de cinco segundos de silêncio, mas daquelas que simplesmente não sabem escrever! Ele, o fabuloso Professor Portnoy, salvador das shikses burras, organiza uma lista de leituras de complexidade progressiva, exercitando o seu humanismo pedagógico. Ele conta sobre a saga de Clitemnestra, mesmo sabendo que metade do que dizia estava errado e, adivinhe de novo, ela o admira. Incrível, Alex, essa moça não sabe ler sem mexer os lábios; diga-me, bubala, qual é o seu problema??

É tão curioso ler este livro – acho que não estaria entre os dez melhores que li em minha vida, mas certamente entre os dez mais marcantes. Talvez eu o tenha comprado pelo fato de a tradução ser de Paulo Henriques Britto, que conheci e admirei em Uma casa para o Sr. Biswas, de Naipaul, e depois por outros textos. E pela capa.

O que não deixa de ser uma coincidência, pois este foi justamente o critério altamente sofisticado que usei para comprar no mesmo dia Solar, o novo livro de Ian McEwan; a capa que tem a textura de uma lixa de unha. Obviamente, esse mar de futilidade que guia minhas leituras não me faz merecer um puxão de orelha da culpa, aquela velha conhecida, mas eu sei que ela já está ali me encarando com um ar de preocupação, exclamando algo edificante como, o que será de seu futuro, meu Portnoy dos trópicos?


Matthew Frye Jacobsen’s Roots too


O humor da obra e, sobretudo, a fluência com que escreve, são admiráveis. Acredito que a estrutura, a forma da narrativa, e a idéia de um relato no divã talvez não fossem extremamente originais ou inovadoras nem para a época, mas Roth é exímio em relatar a experiência do vivido – a experiência individual do vivido, para ser mais exato. E é engraçadíssimo, talvez tanto quanto o hilário Pantaleón de Vargas Llosa. Repare bem, não aquele riso subjacente, que suspira pelo nariz, mas o barulhento mesmo, que abre a boca.

Serão vulgares ou mesmo impróprios os pensamentos do respeitado Comissário Adjunto de Nova Iorque? Sua condição judaica o exila das convenções culturais do ocidente? Mas então por que se sente impotente entre seus pares, quando viaja a Tel Aviv? Será contraditório admirar o austero Abraham Lincoln e, ao mesmo tempo, contratar uma garota em Roma para transar com Mary Jane? Qual é então o seu exílio, sua repressão? O atrito entre hormônios e religião? Uma crítica à criação dos pais, à cultura judaica? Aos Estados Unidos? Será apenas uma história interessante e muito bem contada?

Nicola Jennings, The Guardian
Talvez o desenvolvimento destas tópicas encontre certa dificuldade justamente por não terem sido, antes, resolvidas pela própria trama, que por vezes, bastante pontuais é verdade, pareceu hesitante, monocórdia no ritmo e no tema – quem dera escrever como Roth, mas a questão não é essa. Apesar de ficar completamente absorto e impressionado conforme lia, não vi a articulação e as possibilidades de leitura oferecidas pelo Pantaleón, por exemplo, apenas para manter a comparação. Ressalve-se que ambos os autores exploram o gênero da literatura erótica sem nele caber, e com excelentes resultados – diferente da impressão que tive com a Casa dos budas ditosos, de João Ubaldo, que coube com folga sem exceder.

Não tenho dúvida de que Philip Roth seja um autor importantíssimo e, se seu obsessivo interesse por sexo talvez não choque mais pelo menos grande parte de nossa sociedade, sua abordagem sobre fé, relacionamentos familiares, sobre os remordimentos e o lugar do indivíduo em uma sociedade hostil são absolutamente eletrizantes e atuais.

Sempre desconfiei que bons trabalhos literários portassem consigo, de maneira intensa, duas articulações imprescindíveis: de um lado, uma alta carga autobiográfica e, de outro, uma inestimável coragem para enfrentá-la e expô-la em público. Talvez seja justamente esta a chave para o imediato sentimento de identidade a que a leitura induz – porta também, como desdobramento, a idéia de que possivelmente não somos assim tão diferentes em nossas dores, culpas, desejos e perversões.

Outra antiga suspeita que se reafirma: há sim livros de fácil leitura, com grande fluência e, ao mesmo tempo, extremamente bem escritos. As pessoas provavelmente lêem obras ruins por falta de informação, talvez por sequer imaginarem que algumas leituras possam proporcionar reconforto intelectual à alma e, ao mesmo tempo, grandes prazeres.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Metempsicose: Ítaca, Ulisses, Joyce



Ulisses é um monstro. Terminar a leitura é de certa forma um sacrifício, um trabalho, um retorno para casa. Erótico? Hermético? Esquisito, lascivo, exaustivo: é possível que se conheça Leopold Bloom mais do que a qualquer outro.

Desistir do livro no meio do caminho, saltar páginas, detestá-lo, vomitar nele os órgãos e miúdos mastigados e não digeridos pelo judeu, cuspir, fazer gestos? Continuar lendo? Que se estrepe? Chamar Molly de puta, de vagabunda, detestá-la? Apaixonar-se perdidamente por ela? Achar graça? Querer fodê-la? Pros diabos? É mais ou menos essa a sensação.

Um dia em que todos os instantes, as impressões, as belezas, as hemorróidas e, sobretudo, os pensamentos fossem legados à memória escrita. Como se uma espécie de Irineu Funes narrasse um dia de sua vida; esta minuciosa operação, como recorda Borges, tomaria o tempo de um dia inteiro – um mapa da Irlanda tão exato e impecável que fosse justamente do tamanho da Irlanda.


O livro começa com o despertar, na manhã do dia 16 de junho de 1904, e termina novamente no limiar dos territórios do sono, com os personagens deitados na cama. Um tempo cíclico que, justamente na fronteira entre consciente e inconsciente, culmina com uma destruição refundadora depois da jornada de um dia na vida de Bloom; seu doomsday particular.

Sempre tive a impressão de que o Ulisses se tratou, antes, de um extenuante exercício de Joyce, e talvez por isso tenha ficado particularmente tocado com a abordagem de Caetano Galindo: de um lado, o paralelo homérico que persegue e questiona a estrutura do mito. De outro, a proposta inovadora da pretensão totalizante entre o formal e o material na construção de um realismo exaustivo, que explore e esgote as possibilidades do contar e do acontecer.

Galindo foca um ponto em tudo fundamental que permeia momentos cruciais do livro: o sonho, a embriaguez, a alogia. Momentos de descuido da vigília em que mito e logos dançam furtivamente fazendo com que o fluxo dos pensamentos extravase para a linguagem, contaminando a narrativa.

Quando Dédalus está bêbado na biblioteca, o texto se torna ativamente esquisito, tortuoso. Quando tira seus óculos, perde-se o fio da meada, a forma de contar é confusa, míope, desfocada. No capítulo do ciclope, em que Bloom encontra o irlandês xenófobo, a linguagem é gigante, hiperbólica. Os fragmentos ficam estranhos – e estranhos de jeitos diferentes para cada situação; a explicação é singela e a técnica a acompanha. Joyce persegue sua obsessão, sua radicalidade, a forma entranha o conteúdo.

Odisseu mata os pretendentes (440 a.C., Tarquínia)

À uma da manhã, um novo momento de torpor em Ítaca, talvez o trecho mais instigante, cômico e rico da obra. A sucessão de acontecimentos e de pensamentos é disposta na forma de uma espécie de inquérito debochado e cumulado de dados objetivos. Forma catequética, jocoséria.

Por que torpor se o texto finalmente se porta de um modo mais claro e inteligível? Por que e de que maneira cômico? Por que se organiza a narrativa desta determinada maneira, em centenas de perguntas e respostas?

Bloom e Stephen Dédalus conversam sobre inúmeros assuntos, conhecemos todos e cada um deles, sabemos sobre o que concordaram e sobre o que discordaram, que o antigo hebraico solicitou ao antigo irlandês que ministrasse aulas de italiano a Molly, Gea-Tellus já semeada, que o judeu esqueceu a chave, onde a esqueceu, em que bolso, quão incomodado ficou com seu esquecimento, que decidiu saltar o muro e como o fez, que tomou um tombo, quanto pesa, quando se pesou da última vez nos parâmetros dos calendários mosaico e maometano, de como se ergueu injuriado, quantos anos separavam um e outro, em que proporções. E que dois temperamentos representavam esses homens individualmente? O científico e o artístico, respectivamente.

Com este enxutíssimo truísmo talvez seja possível se acessar o espírito do trecho. A coisa vai longe. Ao entrar na casa, Bloom bate a cabeça em um móvel que o amante de Molly tirou do lugar e passa a fazer uma longa contabilidade dos objetos domésticos, de seus lugares, e do seu dia.

Ao subir ao quarto, percebe mais evidências da traição. Enciumado. Assassinato, não. Divórcio, não agora. Resignado. Queima incenso para exorcizar o cheiro do quarto. Deita-se, beija-a, ela acorda, ele a conta sobre seu dia. Ela lembra que há dez anos eles não fazem sexo. Ele dorme em posição fetal. Ela é a mãe-terra, ele é o marinheiro.

Uma inquietação incomoda o leitor: então o herói retornou da batalha e agora, prestes a ser reconhecido por sua Penélope, adormeceu? É. Mas por quê? E por que não foram respondidas devidamente as perguntas acima? Que tipo de homem é esse? Compartilho as inteligentes e sensíveis suposições da professora Yun Jung Im, que me levaram a escrever este post, e começo pelo torpor.

Onde deveria estar o clímax, encontramos um episódio frio, distante e que relata coisas supérfluas, despropositadas. A voz narrativa parece perder o rumo e se descolar dos personagens, conferindo-os uma dimensão fantasmagórica. É ela que está no palco, não eles; é dela a o fluxo de consciência, não deles. Se a errância de Bloom termina, começa a da linguagem.

Seria este um subterfúgio de preparação para Bloom se deitar com Molly quando não estava preparado para isso? E trazer Dédalus seria uma tentativa de racionalizar o mundo para não sofrer com a traição? É Joyce que distancia educadamente a voz narrativa para que o leitor não tome contato direto com a dor de Bloom? A proposta, tecnicamente instigante, precede o registro de todos os pensamentos de Molly ocorridos das duas às três da madrugada.

Observe-se que tanto Odisseu como Leopold elaboram um estratagema para entrar na casa; o rei vislumbra o brilho do elmo de Athena e o judeu flagra uma estrela cadente; ambos retornam de uma jornada. E inúmeras induções poderiam ser feitas, à exaustão. Mas apenas um dos dois é heroicizado e alcança a glória imortal cantada pelo aedo.

Então Bloom não foi capaz de alçar a história para seu ponto máximo, explosivo? Estará míope a narrativa? A culpa estaria na tradução rebuscada de Antonio Houaiss? Na de Bernardina Pinheiro? Estará também na tão aguardada edição de Caetano Galindo? Na trindade de vozes? Na transmigração da alma?

Pensemos um pouco melhor sobre isso. E se a direção do olhar do leitor é que estiver desfocada? Não estaria este suspeito observador buscando o momento apical do livro no lugar errado? Suponhamos que o clímax da obra esteja na linguagem, e não nos eventos, e enfim poderemos respirar um pouco mais aliviados. Ulisses é um monstro.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A máquina do mundo desconstruída


    

Já há um bocado de anos, em algum mês do final de 2001, eu e dois amigos fomos até a casa de Haroldo de Campos. Exultávamos a chance de levar um convite ao velho poeta para que palestrasse, mas, sobretudo, desbravadores, para que nos mostrasse sua biblioteca, seus livros empoeirados, e talvez até sua primeira obra de bacharelando em direito, Auto do possesso - há livros que a gente admira mesmo sem ter lido.

No caminho, tomei uma decisão dessas de um Cubas, tolas e absurdas que se penduram no trapézio e vão dando piruetas até serem subitamente sabotadas por um feliz lampejo de sanidade: eu confidenciaria a ele uma idéia sobre um livro.
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Por algum motivo inexplicável, A Máquina do Mundo de Drummond significou para mim por muito tempo uma oração que eu predicava em momentos impróprios. Disperso, passeava impunemente na estrada pedregosa de Minas nas aulas de álgebra. Encantado, abria seu majestoso e circunspecto mecanismo durante as explicações de química. E aquele até hoje continua sendo um dos meus poemas favoritos.

Haroldo de Campos havia acabado de dialogar com o texto do itabirano, em uma obra que eu jamais havia lido, translido ou sequer pego em minhas mãos, A máquina do mundo repensada. Obra densa, de maturidade.

Logo que soube do título, tomei por certo: A máquina do mundo desconstruída seria um dia o nome de minha obra mais importante e indômita. Como se vê, dela eu era portador do nome batismal; não me dava conta, na época, faltarem-me ainda o bebê e a pia.

Curioso como as coisas dão de acontecer de um jeito tão diferente daquilo que zelosamente planejamos em algum momento da vida: com o tempo, o que era para ser um livro definitivo se tornou a conjectura de um estudo pretensioso, depois, de um artigo literário, depois, de um ensaio erudito, depois, de um conto, agora um post. Mais um triz e viraria uma reminiscência opaca e fugidia.

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E então chegamos. Conferimos o número, a casa era aquela. Sorríamos uns aos outros. Bora lá.

Quando tocamos a campainha - arrepio - pela porta, que em minhas recordações aparece escura, cheia de adornos e entalhes, a casa pariu uma senhora de certa idade, talvez sua esposa, pessoa amável e bem vestida para quem não espera a visita de estranhos; e acredite, éramos um tanto estranhos.

Um de nós mais corajoso, não eu, disse a que vínhamos, se o professor Haroldo estaria, se poderia talvez nos receber se fosse possível, não avisamos, desculpe o incômodo.

Ela riu, com um ar que provavelmente hoje eu teria lido como zombeteiro, admirado. Sobre nosso embaraço, nossa falta de jeito, de graça. Mas logo recuperou a seriedade e a altivez. Disse está sim, queridos, mas ele está doente, anda meio indisposto. E não pudemos vê-lo naquele dia.

O poeta, já doente, morreu praticamente um ano depois de nossa visita incompleta, e eu jamais voltei à sua casa. Não sei se hoje eu poderia chamá-la precisa, mas certamente esta é uma das lembranças mais vivas do final de minha adolescência.

Gosto de pensar que, quando tocamos a campainha de sua casa, ele traduzia os últimos cantos da Ilíada, e o barulho fez com que perdesse o raciocínio e descuidasse de um verso que, por isso, acabou sendo escrito de outra maneira. Nesta versão patética e linda de nossa rápida visita, participei, ainda que discretamente, de um Canto indistinguível do poema, alterando a história.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O paradigma indiciário, ou a paisagem em que se habita




É já célebre a asserção de Ginzburg sobre os caçadores. Três homens espreitam em um bosque denso. O maior deles observa uma lança partida ao meio e o mato batido. Fareja cheiro de sangue. Reflete sobre a altura dos galhos quebrados. A história está prestes a ser contada a partir da articulação das pistas mudas: o caçador relata aos outros dois a recente passagem de um alce ferido.

A procedimento semelhante se prestam o médico, o juiz, o detetive, o psicanalista ou o adivinho: todos eles, cada qual a seu modo (por seus métodos) e movidos por diferentes finalidades ou propósitos, buscam positivar um acontecimento (uma história) de forma a conformar uma realidade que se pretenda minimamente objetiva.

Bebem, porém, de fontes que, por sua natureza inescapável, memorizaram (representaram, reduziram, deram suporte a) eventos a partir de sua própria e particularíssima percepção subjetiva. Estão dispostas, ainda, de uma determinada maneira (em uma paisagem). Como, então, interpretá-las (julgá-las) de maneira a recompô-las objetivamente se sua totalidade foi perdida nos desvãos da memória e o que se tem à mão são fragmentos (de objetos e de representações)?

Pioremos ainda mais nosso problema: nosso caçador mais alto, CSI do neolítico, resolve registrar o que viu nas paredes de uma caverna e, anos depois, o registro será descoberto (e interpretado) por uma criança. Logo depois, por um fervoroso seguidor de Cristo. Logo depois, por um renomado arqueólogo. Logo depois, por um bandido, caçador de tesouros. Cada um deles, a seu modo (por seus métodos) chegará a diferentes conclusões – estará alguma delas realmente incorreta? Seu repertório material foi o mesmo.

Tornemos isso tudo mais claro (obscuro): houve um assassinato. Proponho, com base no que acabamos de conversar, que você tente descobrir não apenas o assassino e os motivos que o levaram a cometer tão nefasto crime, mas, sobretudo, por que se buscou contar a história da maneira como foi contada.


Primeiro assassinato: Mother (2009)


Este filme foi tra(du)zido para o Brasil com o subtítulo A busca pela verdade. Depois de dirigir O Hospedeiro, Bong Joon-ho parece ter ficado ao lado de outros diretores sul-coreanos interessantes como Park Chan-wook (Oldboy), exóticos como Kim Ki-duk (O arco), ou mais difíceis de encontrar no Brasil como Jang Sun-woo (Resurrection of the Little Match Girl) – a tempo: Wong Kar-wai é de Hong Kong.

Do-joon padece de dificuldades para interagir com o mundo e vive com sua mãe em uma sufocante relação de dependência que, em alguns momentos, flerta com uma ingênua e sutil incestuosidade.

Uma garota foi assassinada na cidade provinciana e os policiais, ao interpretarem as pistas (os traços materiais) – uma pedra ensangüentada, um corpo sem vida – concluem rapidamente que o assassino teria sido Do-joon, presente na cena no momento do crime, na paisagem construída, e o prendem (indiciam, inventariam). Realizam uma reconstituição atrapalhada, teatralizada do homicídio. As fontes orais são escassas e não se revelam até o momento propício – para então se calarem.

Inoportuna, sua mãe comparece à cerimônia religiosa organizada pelos parentes da vítima e afirma a inocência de seu filho. Não porta provas, não demonstra uma narrativa alternativa coerente. Diante de uma afirmação sem compostura lógica as mulheres convulsionam; a cena é catártica.

Busca um advogado, perito nas artes da retórica, em desenredar eventos confusos (profusos) e dar vida às imagens mortas do passado, mas é em vão, os interesses do profissional se assentam em outros campos que não a busca da narrativa (um processamento, uma técnica) como instrumento de persuasão.

O filme trata da idéia da descoberta, da busca por uma reconstituição dos fatos que culminaram com o assassinato da garota, na perquirição dos atores e objetos envolvidos (da escrita da história). É quase hitchcockiano, assustador, e ao mesmo tempo cômico – um riso persistente que subsiste ao suspense. A atriz, ao construir a personagem inconveniente, hipnotiza. A personagem, ao percorrer o caminho, modifica-se.

Ao final, um assassino oculto se revela – inesperado, insuportável. A mãe recompõe, enfim, os eventos do crime e é possível supor que os acontecimentos a tenham obrigado também a reconstituir o curso de seu relacionamento com Do-joon, seu estar-no-mundo.

O motor da construção da narrativa é o compromisso com a inocência do filho, o que conduz a personagem (autora) a uma seleção criteriosa e severa (sanguinária) das fontes.

 Segundo assassinato: Rashōmon (1950)

Baseado em uma história japonesa registrada provavelmente entre os séculos VIII e XII, e que compõe o Konjaku Monogatarishū, o sempre jovem escritor Ryūnosuke Akutagawa, em 1914, então com 22 anos, escreveu o conto Rashōmon e, em 1922, o conto Dentro de um bosque, que narra sete diferentes versões labirínticas para o assassinato de um samurai.

Anos depois, sua obra inspiraria um dos filmes mais ricos, marcantes e incríveis de Kurosawa e uma das melhores atuações da carreira do excelente ator Toshiro Mifune, no papel do ladrão Tajomaru.

Conta um lenhador, perante a autoridade de sua aldeia, que encontrou na floresta, três dias antes, o corpo enrijecido de um samurai. Em seguida, um homem apresenta o ladrão e suposto assassino amarrado a si: encontrou-o contorcendo-se, jogado ao chão pelo cavalo. A partir deste ponto, três depoimentos se sucedem.

Tajomaru, o acusado, relata à autoridade que o samurai passou diante de si com sua bela mulher. Inebriado pelo olhar da jovem, atraiu seu contendor para longe com um ardil e o imobilizou. O ladrão mostra a ela o que fez com seu marido, para humilhá-lo. Determinada, ela tenta em vão ferir o gatuno, mas logo acaba cedendo e se entrega a seus braços. Em seguida, roga para que duelem: seguirá com aquele que prevalecer, mas foge logo depois do assassinato.

O depoimento seguinte é o da jovem: afirma ter sido violentada por Tajomaru, que fugiu em seguida. Aturdida, abraça seu marido, que segue impassível; entende o olhar do samurai e se desespera, mas entrega-lhe a adaga para que se suicide. Depois da morte dele, ainda tentou tirar a própria vida, porém sem êxito.

Em seguida, o falecido depõe por meio de um médium. Narra que, depois de violentar sua mulher, o bandido tentou convencê-la a seguir com ele, ao que ela assentiu, e mais: rogou, traidora, para que tirasse a vida de seu marido. O morto conta que até mesmo o ladrão censurou o pedido da jovem e perguntou a ele se queria que a matasse. Ela foge e Tajomaru corre em seu encalço. Já desamarrado, o falecido enterra uma adaga em seu próprio peito.

Longe da autoridade, o Lenhador confessaria que não encontrou o samurai já morto; escondido, viu o ladrão, depois de saciado, pedir à moça para que seguisse consigo. Ela exige que duelem por ela, mas o marido é um covarde e se recusa a lutar – o bandido, sem um pingo de coragem, vence mais por sorte do que por habilidade, depois de um duelo extremamente cômico e atrapalhado, e ela então foge.

Conforme apontou com acuidade Francisco Murari Pires, cada um dos personagens (autores) articula o eixo dos acontecimentos de modo que a honra, e não a verdade, presida a narrativa: Tajomaru se afirma como exímio duelista, a jovem afirma que seu marido se suicidou por não suportar vê-la violentada, o morto, senhor de si, tirou a própria vida, e o lenhador ocultou em suas duas versões ter aguardado tudo terminar sem intervir para então furtar as armas deixadas para trás.

Conte a história, Sherlock

 Ryūnosuke Akutagawa
O famoso detetive estaria corretíssimo ao recordar sempre a Watson ser tudo muito elementar: a história é composta por fragmentos, por escolhas (a memória se perde na poeira escavada).

Uma lança partida ao meio (um objeto, testemunho de um poder). O mato batido, os galhos quebrados (uma paisagem, uma abstração do entorno). Cheiro de sangue (uma percepção dos sentidos). Juras de amor assumidas com a verdade – sem ironias, o compromisso do historiador é (deve ser) real, sob pena de que o relato seja condenado ao mundo da ficção ou do ceticismo relativista. Tanto melhor (e mais belo) o exercício se sacramentado por um método, abençoado por um suporte teórico.

Recompõe-se (constrói-se) a paisagem, nela são dispostos os objetos selecionados. Alocam-se os verbos que relatarão a ação ocorrida no transcurso do tempo (recorte), escolhidos a dedo. Rebobina-se a cena, já editada. Conta-se uma história, publica-se, registra-se o acontecimento. De volta ao torvelinho da memória.