segunda-feira, 31 de maio de 2010

Dentro da coisa e a respeito da coisa

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Em uma aula de história moderna, a professora conversava conosco sobre o poder do acaso: como, por não ter simpatizado com uma pesquisadora californiana, referência na área, em quase toda a sua vida deixou de lê-la - como preferia outros livros ao dela ao freqüentar bibliotecas e livrarias. O quanto não terá se modificado a história moderna em virtude da antipatia da professora, tão admirável quanto a outra?

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...Mas será esta a melhor maneira de se iniciar um post?

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A peça IN ON IT começa por constatar: algumas coisas, como uma peça de teatro, um livro, um blog, são planejadas, pensadas, avaliadas. Outras, obedecem ao acaso, como uma colisão no trânsito.

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Traduttore, traditore: o nome da obra, estranho de plano, seria algo como "por dentro de algo", mas bem poderia ser seccionado em duas fatias - dentro dela estão os personagens; contudo, também a respeito dela eles conjecturam. Para um jovem estudante canadense de inglês, talvez remeta aos mecanismos lingüísticos indicadores do tempo e dos lugares, coisificando-se o at.

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Remete não a despropósito: trata-se do lugar da representação, reconstruindo-se o texto a ser representado representando-o diante da platéia. E trata do tempo da memória, ressignificada a partir do tempo presente que, simultaneamente, ao ressignificá-la, discorre sobre o da ficção.

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Nada disto é confuso quando se assiste a peça. São dois atores de carne-e-osso. Que representam um autor e seu namorado. Este autor mostra a seu parceiro a sua obra e, para fazê-lo, eles a representam. Na obra, um homem descobre que irá morrer e que está sozinho. Autor e namorado, ao comentarem sobre o texto, intercalando representação e comentário, relembram seu próprio passado, a partir de duas indagações: você tem certeza que esta peça deve realmente ser escrita desta maneira?, e nós fomos felizes?

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Particularmente, assisti a peça em meio a uma tentativa de reconciliação de um amor mútuo de longos anos, o que me pegou de surpresa. Tendo sido deliberadamente abordado, comecei a supor formas de abordá-la.

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Os caminhos da linguagem que se interpenetram é uma das maneiras extremamente instigantes para se acessar a obra. A morte e o amor estão ali, as estranhas dinâmicas das relações estão ali, a solidão sem-fim está ali. Discute-se a importância das coisas, a casualidade das coisas.

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Como entender a separação, a morte? E se nós fomos felizes, se devemos realmente continuar juntos? As amarras e dobras da memória são suficientes, ou poderá acaso algo (fortuito) como o acaso nos separar? E se foi justamente este acusado-acuado acaso o responsável por nos aproximar?

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Os tempos/lugares de IN ON IT nos possibilitam outro entroncamento argumentativo: em que medida o presente é regido pelo passado? Em que medida reforjo o tempo da memória no canteiro de obras do presente? Até onde vai a representação - ou até onde sou eu mesmo? Ator ou autor no mundo?

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Quando a resposta escapa a toda forma de abordagem racional, talvez apenas a ficção indique um caminho às preocupações mundanas, como quis Lucien Goldmann: a literatura (a arte, a imaginação) acessa a tomada máxima de consciência - não é com um tratado, mas com o devaneio de um cavaleiro andante que se funda o romance moderno.

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A questão aflige a História e aos historiadores da minha geração ao se debruçarem sobre o passado. Aflige a mim mesmo, a meus amigos e conhecidos. Como estar dentro desta coisa e discorrer a respeito dela, dotá-la de inteligibilidade? Como o controle da coisa onde o acaso? A imaginação, como o sonho ou a arte ou a escrita cuneiforme ou a matemática, seria mais um suporte para se acessar a realidade? Em momento algum se perde a linha do raciocínio; o público é conduzido e interage, o espetacular acontece, as coisas simplesmente acontecem..

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Imerso na segunda camada da ficção, o personagem que irá morrer (ora representado pelo autor da peça, ora representado por seu namorado), morre. Não da forma como haveria de morrer inicialmente, mas envolvido em uma batida de carro, em um terrível acidente de trânsito. Operará o acaso? Escurece, há palmas, alguns já se levantam.

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Ora, não acaba assim, quase reclama o autor, triunfante, ao suspirar, ao tornar a si: o público gosta de tudo amarradinho (talvez este seja Daniel Maclvor falando diretamente a seus espectadores). Enfins, o namorado do autor põe o casaco, vai sair para comprar (um cigarro? um jornal? papel-higiênico?) e, então, convergentes no tempo e nos lugares da narrativa, ficção e realidade se encontram ao dobrar a esquina.

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Este aí seria um bom jeito de terminar o post: dramático, sem grandes spoilers a quem não viu a peça, faria sentido para quem a assistiu e talvez até provocaria algum prazer estético, quase banal. Mas não termina assim, convencional, busca surpreender e surpreende, a obra de arte não deixa saber sobre o que exatamente se está falando, mas fala, e algumas coisas não terminam, apenas param. Competirá a seus personagens dolorosa tarefa: para retomarem seu curso, para enfim terminá-la.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Volto porque te amo

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Proponho o exercício de ler um filme. Viajo porque preciso, volto porque te amo. Primeiro, a localização dos realizadores, das biografias, da formação acadêmica, da obra pregressa.

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As camadas mais evidentes que presidem a narrativa: a transposição do rio São Franciso, o olhar do geólogo sobre o Nordeste setentrional, a dor da separação.

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Um plano mais atento: a forma da narrativa, a primeira pessoa, a linearidade do tempo presente, o personagem jamais visto. Os grandes planos. A acuidade fotográfica.

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O labor técnico: a multiplicidade dos suportes do registro cinematográfico. Uma câmera digital, uma máquina fotográfica. Uma bitola 35 mm, onerosa, uma Super8, acessível ao cineasta mais jovem, tão cara a Fernando Spencer no Recife de outros dias. O que escapa do olhar? Quando se usa a 16, quando a 35 a eu mais leigo? O que a experiência sobre a cena modifica ou é modificada? Quais as dimensões de cada uma das sensorialidades dadas a conhecer pelos cineastas? Por que motivo uma em detrimento da outra, em que momento?

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Quanto ao caminho: um relato de viajante, de peregrino, descendente da cultura retirante. Um diário. Uma obra epistolográfica a Galega, destinatário já inexistente. A riqueza do olhar, uma descoberta. A viagem transformadora, o rito de passagem. Da costa ao sertão. Do mito à aridez da experiência do vivido. Viaja porque precisa se reencontrar.

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O jogo de opostos: a observação metodológica do geólogo exato, a angústia do espírito ferido. Quer voltar, não quer voltar. A despedida da esposa: não volto porque ainda te amo. E se liberta: não há mais como voltar.

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No uso dos planos e dos enquadramentos: conforta e desconforta o narrador-espectador no espaço da cena, detrás de um caminhão baú, diante dos grandes planos.

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Narrador-cineasta: observa o casal de velhos, afogados no peso de suas fotos, ex votos, imagens. O marido sai do plano. Pede que volte. Não é ele quem vai separá-los, mas representa a separação do casal de suas memórias. Representa a vazão do rio, o progresso, a flecha do tempo.

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No plano sinestésico: a sobreposição das leituras: a transposição da alma, afogada no amontoado da memória. Ao fim se liberta do afogamento, mergulha para a vida. A aridez do solo, a desolação da paisagem, do personagem. As cidades esvaziadas. O vazio dos futuros desalojados; nada está adiante. A imagem chapa a realidade documental; os sons desmentem os olhos e nos deslocam ao plano mítico. A canção do sapateiro é ponto alto, inocente, desperta risos, afeição, prazer estético. O sapateiro entretece som e imagem, prega no couro do calçado mito e realidade.

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Uma crítica: o cineasta não explora a geologia, não ensina ao espectador a linguagem da pedra, não mostra o lento movimento da montanha, não desvenda os desvãos da linguagem técnica, não desenha o contorno da bacia, oportunidade perdida.

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A dimensão social: se não é explícito como Madame Satã, é sensível. A prostituta deseja a vida-lazer. O que é lazer, pergunta, é ter alguém para amar, responde. Uma casa. O narrador paga por prazer, redescobre-se. Com outra garota, desiste no caminho para o programa. Olhar triste da garota, incômodo. Desconforto persistente, dolorido. A miséria salta aos olhos, a ignorância salta aos olhos, a religião assalta os olhos: a festa da Padroeira. Padre Cícero. Juazeiro do Norte está sempre cheia de gente.

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A política: o rio, a obra, por que a insistência, pergunta, não é problema seu, responde, dá de ombros, os realizadores não respondem. As cidades se esvaziam. A diversão rudimentar do circo diante da iminência do dilúvio. Um casal conversa, é ricamente descrito, agora já é possível rir, maravilhar-se com a presença do outro.

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De um grande mérito: tem coragem de inovar, de contrariar os manuais, é exímio com o tratamento da imagem, forma e conteúdo. É experimental, não amador. É arte e entretenimento. Como o rio, busca um novo caminho.

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Ao final do filme, depois de longos mergulhos, experimentei uma sensação de profunda imersão. Poucos, senão nenhuns, levantaram-se até muito tempo depois de se erguerem os letreiros. A música deu seqüência à narrativa e tornou trabalhoso se desapegar da poltrona. Um filme rico de ser lido.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Objetivos! Objetivos!

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Havia certos escritos na gaveta que mereciam algum ar puro por bom comportamento e, por isso, este blog.
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Contra o conselho de Olavo de Carvalho, opino logo de cara sobre José Serra e autonomia universitária:
  • Aprendizado e violência: da autonomia à militarização do espaço universitário (clique aqui)
Contra o conselho da boa publicidade, coloco alguns trabalhos de história resgatados do mais completo esquecimento:
  • Do rancor de Apolo à alegoria do vampiro - leituras da peste, sombras da morte (clique aqui)
  • Juízes e eleições: entre o poder pessoal e o Estado no Brasil do século XIX (clique aqui)
  • Resenha do mestrado "Guerra entre pares" de Erik Hörner (clique aqui)
  • "Baixa cultura" escrita e formação da opinião pública na França pré-revolucionária (clique aqui)
Contra o conselho do bom-senso, por fim, publico outras coisas, entre as quais um conto que particularmente me agrada, acerca de um cão urbano:
Ao serem publicados, fico com a impressão de que será como se estes textos subissem no poste: estarão sobre o pedestal, mas fora do alcance da luminária - nem tudo se ganha.

Ficam relegados a este pequeno labirinto, coxa suculenta de novilho a Mnemosyne, mãe de Clio.

Preâmbulo - Do rancor de Apolo à alegoria do vampiro: leituras da peste, sombras da morte

O trabalho a seguir foi desenvolvido no 2º semestre de 2007 como requisito parcial para a conclusão da disciplina História Antiga II, sob orientação do Professor Dr. Francisco Murari Pires. As figuras estão reproduzidas em versão reduzida no post seguinte ao texto e talvez seja difícil vê-las; poderei enviá-las para quem se interessar. Sugiro fortemente ao navegante a visita a Heros, o magnífico e labiríntico site deste professor (clique aqui). Abaixo, seguem excertos (fontes escritas) que abrem este trabalho.


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Para Elisa, pelo torvelinho de imagens que cultiva;
pelas observações sempre tão inteligentes e instigantes.
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Quando, porém, o vinho tinha subido à cabeça do Ciclope,
[Ulisses] disse-lhe então com brandura: Ciclope, tu perguntas-me o meu
ilustre nome. Vou dizer-to; mas dá-me o prometido dom de
hospitalidade. Ninguém, é o meu nome. Minha mãe, meu pai e
todos os companheiros costumam chamar-me Ninguém.
Assim disse; e ele replicou-me logo com ânimo cruel:
- Ninguém será comido, depois dos seus companheiros; a
eles comê-los-ei primeiro. Este é o presente de hospitalidade
que hei de dar-te (...). O gigante soltou um tremendo urro, tão forte que a rocha
ecoou em volta e nós recuámos, assustados. Extraindo, depoís,
do olho o pau sujo de sangue, o Ciclope louco de dor,
arremessou-o de si com as mãos e chamou a altas vozes os
Ciclopes que habitavam em covas, à roda dele, pelos cumes
expostos aos ventos. Ao ouvirem os seus gritos, acorreram uns
de um lado, outros doutro e, parando junto da gruta, perguntaram-lhe:
- Que aflição é essa, Polifemo? Porque gritas? Leva-te,
porventura, alguém os teus rebanhos, mal grado teu? Matam-te por astúcia ou por violência?
Do seu antro respondeu-lhes o robusto Polifemo:
- Oh, amigos, Ninguém me mata, por astúcia, não por violência.
Em resposta, disseram-lhe estas aladas palavras:
- Se, pois, estás só e ninguém te faz violência, é
inevitável a moléstia que te envia o grande Zeus


Odisséia, de Homero, tradução: Pe. E. Palmeira e Pe. M. Correia, pp. 86 e 87.

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(...) À memória dos mortos – fala o cidadão levantando o copo e olhando feroz para Bloom (...) Eram exactamente dezessete horas (...) – Está em marcha – fala o cidadão. – Pro inferno cos danados dos brutos dos sassenos e seus patois.
Aí J.J. mete sua fala numa lengalenga a respeito de que uma história é boa até que a gente ouve outra e o escurecimento dos factos e a política de Nelson pondo o olho cego no binóculo e baixando um decreto de moratória para sufocar uma nação e Bloom tentando apoiar ele em nome da moderação e da foderação e as colônias e a civilização deles.
– Sifilização deles, é o que você quer dizer – fala o cidadão. – Pro inferno com eles! Que a maldição desse prestapranada de Deus arrebente os costados desses sacanas desses estupidões desses filhos das putas! Nem música e nem arte e nem literatura dignas do nome. Qualquer civilização que tenham é a que roubaram de nós. Esses gajos desses filhos de fantasmas bastardos”.
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Ulisses, de James Joyce, tradução: Antônio Houaiss, pp. 397, 400 e 421.

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Os piores anos da peste bubônica no sertão do Cariri foram [19]36-37, quando ocorreu intenso surto epidêmico na cidade de Crato (CE), atingindo também na vertente sul da Serra do Araripe o Município de Exu (PE).

O tratamento com soro antipestoso, em geral, era iniciado tardiamente. Não tinha sido ainda descoberta a estreptomicina eficaz na cura da doença. Os coeficientes de mortalidade eram muito elevados e a peste apavorava.

Naquela época estava sendo melhorada a estrada carroçável que seguia a Chapada do Araripe de leste a oeste até Picos, no sertão do Piauí.

Um parente meu, engenheiro Martins de Freitas, estava encarregado de um trecho compreendendo a descida da Chapada para Exu. Ele viajava muito por aquelas bandas e às vezes parava em uma pequena bodega que havia na estrada próximo da descida da Serra. Ali tomava café, procurava saber notícias de Exu, se tinha passado cangaceiro por lá, se estava havendo peste.

Um dia seu Cecílio informou: ‘a peste ta tinindo no pé da Serra de Exu, mas aqui graças a Deus tudo calmo’. ‘Depois eu preparo uma garrafada de sete meizinhas que é garantida, fecha o corpo, a peste perde a força’.

Uns três meses depois José Martins fez nova parada na bodega e viu toda família de preto.

- Quem morreu, seu Cecílio?

- Foi uma sobrinha, ela foi pra Rancharia e a bubônica derrubou.

- Ela não tomou a garrafada?

- Tomou; mas a garrafada estava desunerada; parece que eu carreguei a mão no querosene”.



Celso Arcoverde de Freitas
Histórias da Peste e de outras Endemias, 1966

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Do rancor de Apolo à alegoria do vampiro: leituras da peste, sombras da morte

I. Comece a contar, a (re)ver por outros olhos
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Trata-se, sobretudo, do trabalho de agrupar e de separar releituras. Em outras palavras, de um exercício de afastar e aproximar objetos encontrados no nosso presente, no nosso tempo, imersos em suas distintas temporalidades.
Calvino nomeia os atributos dos clássicos: aqueles que sempre são relidos, jamais lidos, portadores de novas descobertas, das marcas das culturas e leituras precedentes, um equivalente do universo, bem localizado entre seus pares, “que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”.[1]
Mas como abstrair da profusão sem fim das dobras da memória uma seleção coerente, dotando-a da mínima inteligibilidade e, mais, dela extrair um fazer historiográfico? Sem um esforço metodológico, evidentemente se poderia produzir algo até interessante, mas aterrado em terreno literário, o que fugiria à pretensão, a despeito de opiniões em contrário que pugnam pela equivalência entre os intentos. Os compromissos são outros. O que fazer em tempos de crise de paradigmas?
Uma vez localizada a proposta, o objeto, e colocado o problema do método, tendo em vista a variedade das fontes utilizadas, é necessário cautela: não se deseja encontrar nos monstros homéricos a origem dos vampiros, ou realizarem-se incursões deste gênero.
A tópica eleita é a peste e sua conversa com a morte. A revelação é seguida de outro cuidado: tampouco se conforma neste trabalho, como poderia parecer em um primeiro momento, a busca de uma pretensa transhistoricidade de uma ou de outra, mas sim a perquirição do material com o qual uma época reelabora a outra em seu próprio canteiro de obras.[2]
A análise da fonte numismática, a moeda do Apolo portador do arco, será precedida de outras considerações, que tentarão ser confundidas e desveladas, sombreadas e esclarecidas, à maneira do expressionismo alemão que presidiu a fotografia do Nosferatu de Murnau: o jogo de claro/escuro será a base para a problematização sobre os domínios de historicidade.
Da mesma forma que se rejeita a instrumentalização das fontes, nelas buscando a recomposição dos fatos, não se presta este exercício a mapear a peste, mas articular algumas de suas representações. A natureza endêmica da doença, conforme se infere do testemunho do médico sanitarista recortado na epígrafe, permitiu a sua produção em diferentes épocas – ou, para usar o referencial de Hartog – sob diferentes regimes.
A medicina atual[3] reconhece três formas clínicas daquilo que convencionou chamar ‘peste humana’: a bubônica, a pneumônica e a septicêmica,[4] causadas pelo agente causal denominado Y. Pestis,[5] transferido aos humanos pela pulga de roedores, sobretudo do rato, e sensível principalmente ao tratamento com estreptomicina, um antibiótico da classe dos aminoglicosídeos, sendo que a literatura médica especializada registra inúmeros casos da doença ocorridos em todo o século XX d.C.[6] A gangrena causada nos membros nos quais se concentra o foco da infecção causa um escurecimento da pele, o que tornou o mal conhecido como “peste negra” (cf. Figura nº 2).
Rever com outros olhos: do futuro, Joyce escreve Ulisses. Às dezessete horas do dia 16 de Junho (a décima-segunda hora do seu romance), Leopold Bloom, o corretor de anúncios de jornal casado com Molly, filho de pai judeu e imigrante, que mudou de nome ao chegar à Irlanda, dirige-se ao bar Tavern para se encontrar com Martin Cunningham. Contudo, para seu desprazer, ali encontra o cidadão, que fala sobre a pena de morte. Ouve sobre a história da Irlanda e de como foi infestada de estrangeiros; os mortos são lembrados pelo homem, que olha com desprezo para Bloom: a tradição gloriosa está manchada pelo corpo estranho.
Bêbado, J.J. argumenta, enfurecido com o cidadão, que “uma história é boa até que a gente ouve outra”; em que pese seu torpor, nada mais relevante: ver com um dos olhos é uma experiência sensorial absolutamente nova ao observador que apenas viu com o outro.
J.J. recorda a história do almirante Horácio Nelson, herói britânico, que, em 1802, desobedeceu à ordem de retirada determinada por seu superior na investida contra a armada dinamarquesa, argumentando que não pudera ver o sinal, uma vez que havia colocado o telescópio em seu olho cego. O cidadão vê como indigesta a idéia de que as colônias possam fazer parte da civilização.
Bloom fala de compreensão e de amor; o cidadão insiste na ordem estabelecida, único paradigma possível. Enfurecido, violento, imerso em seu nacionalismo, expulsa o marido de Molly do bar sob xingamentos.
O cidadão xenófobo, em sua intransigência, sente-se profundamente incomodado com o estrangeiro que se encontra em sua terra – sua ilha, na medida em que se trata do Reino Unido – vendo-o como verdadeiro invasor que aporta como ameaça e que, portanto, deve ser aniquilado. Mostra-se bruto, hiperbólico, grosseiro, agigantado. De volta ao pretérito (cai um raio no abismo, iluminando para frente e para trás): na história de Polifemo, aquele que viu as coisas a partir de um único ponto de vista acabou cego e enganado.


II. A doença
Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim;
mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal;
porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”.
Gênesis (2:15,16, 17)
Narra o diário escrito por um exímio historiador, chamado Johann Cavallius, uma fascinante e insólita seqüência de eventos ocorridos na pequena e provinciana cidade alemã de Bremen, no ano de 1838, envolvendo as inocentes figuras de Jonathan Harker e sua jovem esposa.
A história começa com Jonathan: arrume a gola, colha flores, presenteie e corteje a esposa, Jonathan. Ao se esvair ao espaço público da rua, será advertido por seu chefe, o Sr. Renfield, um homem velho e estranho: “Wait, young man. You can’t escape destiny by running away”.
O tom profético é dado à trama: em seguida à advertência, o homem velho recebe uma carta grafada com símbolos pouco habituais à escrita germana. Um excêntrico nobre do leste europeu pretende investir seu dinheiro na cidade, adquirindo imóveis: Harker será determinado o emissário dos documentos, a fim de celebrar o contrato; vá imediatamente aos Cárpatos e, assim, ganhará muito dinheiro para a sua nova família [“(...) some lost corner of Carpathians”, você dirá a Nina, que não parece ter gostado da idéia, justificando os meses fora; deixe-a com seu casal de amigos].
O nobre, portador do título de Conde, chama-se Orlock. O anúncio de Jonathan, em uma hospedaria, sobre sua tarefa, desperta espanto nos locais: Não vá, bom Jonathan, não vá! Se for, então, teimoso, precisa ir agora, pois “The evil spirits become all-powerful after dark!”.
Um lobo espreita; os cavalos são tomados de pavor. Somos avisados do que só você não percebe, Jonathan, seu tolo. As mulheres estão comentando. Na gaveta ao lado da cama da hospedaria em que você dormirá, um livro: será uma bíblia? Um manual de licantropia? Seu título: “The book of the vampires”. Leia, Harker, leia logo.
(...) and it was in 1443 that the first Nosferatu was born. That name rings like the cry of a bird of prey. Never speak it aloud… (…) Men do not recognize the dangers that beasts can sense at certain times
Ah, sim, que bobagens, você diz. Durma esta noite, Jonathan, que você não sonhe com o choro da ave de rapina. Amanhã, acorde muito bem disposto, siga ao castelo - com os cavalos, até o pôr-do-sol; então, seguirá sozinho. Os animais não são estúpidos, homem. Os portões se abrem para você, entre, o conde o aguarda. Além do mais, você está muito atrasado, já é quase meia-noite, os criados já se deitaram. O próprio dono do castelo o recebe.
Coma, Jonathan, alimente-se, Você não come?, Não como, ficarei lendo, Oh, assustado com o relógio que anuncia a meia-noite, cortei-me, Cortou-se? Oh, oh, cortou-se, foi? Por favor, não limpe ainda! “Your blood... your precious blood!”, Assim me assusta, meu Conde, até que o sol se erga sentirei a opressão da noite!
Harker acordará estirado na cadeira no dia seguinte. Espreguice, novamente bem-disposto, você sempre está alegre ao acordar. Ora, essa mordida no seu pescoço. Terá sido uma aranha? Como você é ingênuo. Vamos comer, a mesa está posta. Onde estará o conde? Ande pelo Castelo, como é grande!
Nina, my beloved. Don’t be unhappy (...) I love you (…) This is a strange country, anyway. After my first night in this castle, I found two large bites on my neck. From mosquitos? From spiders? I don’t know
No meio da carta, você é atrapalhado por um inseto. Quer lhe chupar o sangue, Harker querido, não deixe. Você teve alguns pesadelos assustadores, mas não passaram de maus sonhos. Nina não deve se preocupar. Ao cair do crepúsculo, o castelo renasce com sombras ameaçadoras.
Assine aqui e aqui, meu nobre conde, Ah, sim, sim, mas... está é a foto de sua esposa?, Sim, meu conde, Que adorável pescoço o dela, como você é afortunado, meu jovem, ...., Esta velha mansão parece satisfatória, nós seremos vizinhos, Oh, por Deus, ele assinou o contrato, este ser horrível e fascinante, e esta gota de sangue em meu dedo cortado, que prazer em tê-lo à boca, e este livro, este livro novamente aberto em minhas mãos!
Nosferatu drinks the blood of the young, the blood necessary to his own existence (…) One can recognize the mark of the vampire by the trace of his fangs on the victim’s throat
Meia-noite novamente, meu jovem. O vampiro acordou. A porta de seu quarto se abre sozinha, o espectro do conde cresce, espraia-se. Muito a oeste daí sua esposa se levanta da cama, sonâmbula, caminha sobre o parapeito perigosamente e só é salva por seu amigo. Desmaiado, Jonathan? Sua esposa acorda em Bremen de seu sonho demoníaco, chamando por você, seu covarde – você que agora, desfalecido, está envolto pela sombra viva do morto. Nina, você está bem? Ela está bem, doutor?, pergunta o amigo, Ela arde em febre, E a que se deve o transe terrível? A uma doença desconhecida.
É de manhã. Harker, você sempre tão bem disposto ao acordar, levanta-se sobressaltado? Dói o pescoço? A cabeça? Você está diferente, Harker, está mudado. Para onde vai? Para lá? Invadir os domínios dos estrangeiro? Ele se deita sobre um caixão? No que você está pensando? Quer levantar-se? É de manhã, então? Fuja, seu medroso, salte da janela! Um canoeiro o encontrará pela manhã, com febre alta, vai levá-lo à sua casa, cuidar de você que nestes lençóis parece envolto em um casulo! Ao acordar, murmurará: “Coffins... Coffins filled with earth”.
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Os pesados caixões, cheios de terra, repletos de ratos farejando o cheiro da morte, são carregados no navio. Que asco esses ratos! Que imundos, mordendo! Marujo, não venha com meninices, carregue os caixões, leve a Bremen o desastre, as coisas são como são.
Na cidade, o Dr. Van Helsing, em uma sala bem iluminada, explica que as plantas carnívoras são os vampiros do reino vegetal. Agora sim, agora sim, com a ciência o relato ganha em verossimilhança, tudo fica muito mais crível, muito mais apreensível e, portanto, temível e assustador! Uma nova prova: vejam, cavalheiros, mais uma prova, outro tipo de vampiro, um pólipo dotado de garras, vejam-no do microscópio, testemunhem com super-olhos, ele é “transparent, without substance, almost a phantom”. Façam “oh!” de surpresa.
O ex-chefe de Harker, o velho e estranho Sr. Renfield, controlado pelo Conde Orlock à distância, é internado como louco. Está comendo moscas, como a planta de Van Helsing. Que homem asqueroso. Hei, veja, tentou morder o médico! Segurem-no! Já está mais calmo.
Nina aguarda pelo retorno de seu marido nas dunas da praia, entre crucifixos. Serão lápides de mortos? Recebe as cartas anunciando sua volta imediata a Bremen. Ela preocupa-se, chora. Enquanto isso, Jonathan, enfraquecido, mas agora sério, esguio, começa sua jornada.
O navio cruza o mar e aporta na cidade com toda a tripulação morta. O Conde Orlock se retira à sua mansão recém-adquirida com seu caixão sob os braços, à luz da lua, chegando, de pé, sobre uma barcaça. Exerce uma força assombrosa sobre Nina, sonâmbula. A esposa, no torpor do sono, sorri: “He’s coming. I must go to meet him”. De quem estará falando? Os desmaios e as crises de sonambulismo se intensificam até a chegada de Jonathan:
Jonathan! Thank God you are safe! Now I feel that I too have been saved!
Nina promete a Harker jamais abrir o “Livro dos Vampiros”, mas é incapaz de resistir à tentação. Ao lê-lo, é tomada de um torpor quase erótico e contorce seu corpo, até encontrar a solução dos problemas:
Only a woman can break his frightful spell – a woman pure in heart – who will offer her blood freely to Nosferatu and will keep the vampire by her side until after the cock has crowed
É a única solução, Jonathan, Não, eu não posso permitir! Claro, Jonathan, você poderia ter sido o herói, não o foi, a heroína, a sacrificada, será Nina e não você, homem. Agora vá lá fora, veja, a multidão enfurecida corre atrás de seu ex-chefe, responsabilizando-o por todo este sofrimento. Mas onde está? Por que se esconde? Nina abre a janela, deixa-se ser tomada pela sombra escura, recebe o beijo do monstro e o mantém consigo até cantar o galo: Nosferatu é destruído pela luz. “The master is dead”. Sim, Sr. Renfield, o morto está morto.
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Alguém diria com razão que partes muito importantes da história contada pelo historiador Johann Cavallius, por meio de inúmeros documentos, foram omitidas. Os mais críticos, que a principal chave do filme, a própria metáfora induzida e conservada pela idéia do vampiro, ficou de fora.
Retomemos as inscrições que abrem o filme de Murnau:
From the diary of Johann Cavallius, able historian of his native city of Bremen:
Nosferatu! The name alone can chill the blood!
Nosferatu! Was it he who brought the plague to Bremen in 1838?
I have long sought the causes of that terrible epidemic, and found its origin and climax the innocent figures of Jonathan Harker and his young wife, Nina”
O ex-chefe de Harker, já enlouquecido pelo poder do Conde, lê uma tira de jornal, que roubou do enfermeiro:
New plague baffles science
A mysterious epidemic of the plague has cause of the broken out in Eastern Europe and the port cities of the Black Sea, attacking principally the young and vigorous. Cause of the two bloody marks on the neck of each victim baffles the medical profession”.
Do navio que aporta em Bremen pululam ratos e o seu diário de bordo fala de uma terrível doença que acometeu a todos, causando manchas, sobretudo na altura do pescoço, e levando à loucura: “18 May 1893 (...) Mate out of his mind – Rats in the hold – I fear the plague”.
No meio da rua, uma nota é lida em alta voz aos habitantes por um mensageiro público, que faz ressoar o tambor.
Notice – To halt the spread of the plague, the Burgomaster of Bremen forbids the citizens of this city to bring their sick to the hospitals until further notice
O pânico toma conta dos moradores da cidade, que fecham as janelas de suas casas, temerosos da contaminação pela peste. Uma cruz é desenhada com giz nas portas das casas infectadas para que sejam evitadas, deixadas de quarentena, e inúmeros caixões são retirados. Com a morte de Orlock, a doença desaparece.
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Nosferatu – uma sinfonia do horror"[7] (do original “Nosferatu, eine Symphonie des Grauens”) é o filme de 1922 do diretor alemão Friederich Wilhelm Murnau, professor de filologia e de história da arte que cresceu em Westfalia, uma pequena cidade a oeste da Alemanha.[8]
Trata-se de uma adaptação do livro “Drácula”, de Bram Stoker. Como as negociações pelos direitos autorais da obra não prosperaram, foram realizadas adaptações, sendo a mais sensível o nome do vampiro, de Vlad Tepes para Orlock, e da titulação da sua família, de Draculia para Nosferatu. Para este trabalho, à exceção do nome do vampiro, preferiu-se manter a denominação dos demais personagens para evitar maiores confusões. No entanto, abaixo estão discriminadas as equivalências.
Romance de Bram Stoker
Filme de Murnau
Vlad Tepes, o Drácula
Orlock, o Nosferatu
Harker
Hutter
Nina
Ellen
Renfield
Knock
Van Helsing
Bullwer
Não se pretende, neste trabalho, mesmo por ausência dos subsídios mínimos, adentrar na discussão travada entre os especialistas em cinema sobre se o Nosferatu de Murnau seria um filme mais pertencente ao cinema realista do kammerspiel alemão (e, portanto, mais próximo do “A última gargalhada”, do próprio diretor), conforme nos parece em um primeiro momento, ou ao expressionista (cujos maiores representantes, senão os únicos, seriam “O gabinete do Dr. Caligari”, de 1919, do diretor Robert Wiene, e “Da aurora à meia-noite”, de 1920, de Karlheinz Martin sobre a peça de Georg Kaiser). Para além destas classificações, inegável o trabalho com contrastes por parte de Murnau (cf. figura 4). Como logo se notará, inúmeras possibilidades de análise do filme (nenhuma, absolutamente, menos relevante) serão deixadas de lado.
Interessa-nos, muito mais, compulsá-lo ao lado do romance de Stoker. Antes, contudo, um brevíssimo comentário sobre o filme de Werner Herzog, “Nosferatu, o vampiro da noite” (“Nosferatu, Phantom der Nacht”), de 1979.
Herzog, da geração de diretores como Win Wenders e Rainer Werner Fassbinder, admirador de Murnau, opta, diferentemente de seus antecessores, por um único narrador (que se sobrepõe à multiplicidade dos contistas: o historiador, o diário de Harker, o diário de Bordo do navio, as correspondências, o livro dos vampiros, entre outros).
Klaus Kinski, o ator que interpreta o monstro, não causa o mesmo impacto daquele ao qual dá vida Max Schreck, em que pesem as cores e o erotismo acentuado, conforme se denota da comparação entre as figuras 5 e 6: as mãos de Kinski se permitem tocar os seios, o olhar à câmera é protocolarmente evitado.
O filme de Herzog dá maior acento ao sono, à insensatez do universo onírico, preferindo a abordagem psicologizante: a mordida do vampiro é a concretização do desejo sexual da jovem esposa, jamais realizado por Hutter/Harker. Em seu turno, o Nosferatu, condoído por sua incapacidade de amar, conforme o discurso que faz a Jonathan no castelo, conduz uma multidão de ratos à cidade, trazendo consigo o mal da peste, e, nos instantes que precedem a sua morte, encontra-se reconfortado e não mais sozinho. A virgem e o monstro se tornam criaturas complementares e libertam Harker de sua insatisfação com a cidade (ou com a esposa) de canais cujas águas sempre retornavam ao mesmo ponto, em um ciclo previsível e insuportável – libertam-no, talvez, do próprio ciclo da vida, por meio da maldição do vampiro.
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Na virada do XVIII para o XIX, Francisco Goya desenhou uma gravura para inaugurar sua série “Los Caprichos”, com a inscrição: “El sueño de la razón produce monstruos”. O sonho, ou o sono da razão? No século que se anuncia, o diálogo entre as luzes e as trevas é ponto de partida para inúmeras discussões e, atrelado à discussão do ser terrível ao qual deu vida Stoker e, depois, Murnau, produz novas imagens, algumas das quais selecionadas a seguir.
Não se realizará um mapeamento dos vampiros e monstros, mesmo porque não conhecemos, durante a elaboração deste trabalho, muitas fontes usadas por Bram Stoker – o que se pode afirmar com certeza é que o autor foi tributário a uma longa tradição, da qual se destaca, como uma influência marcante e relativamente próxima, o relato romântico “O vampiro”, de John Willian Polidori, de 1816, que, por algum tempo, foi atribuído a Lord Byron. Neste conto, o vampiro é pensado como um ser aristocrático, fino, extremamente sedutor, que se vê como muito superior aos homens.
Publicado em 1897, Drácula parece nunca ter sido considerado um clássico pela crítica, mas inegavelmente teve enorme repercussão no imaginário das pessoas. Dois outros monstros, a exemplo daquele criado por Stoker, costumam ser lembrados pela autonomia que galgaram em relação a seus criadores: “Frankenstein; or the modern Prometheus”, da inglesa Mary Shelley, publicado em 1818 e “The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, do escocês Robert Louis Stevenson, publicado em 1886.
Entre “Drácula”, “Frankenstein” e “O médico e o monstro”, inúmeras associações e induções poderiam ser realizadas, conformando pontos de partida extremamente ricos ao campo do historiador, tais como: o desenvolvimento do gótico no Reino Unido, articulado pela idéia do monstro, o progresso técnico, tão evidenciado nos três romances, a maneira fragmentária da narrativa articulada com o desenvolvimento do conceito de indivíduo no século XIX, a autonomia da obra com relação ao autor, entre muitos outros.
Talvez algumas destas questões esbarrem na composição deste trabalho, mas outras seleções poderiam ser concebidas, conforme se passa a fazer para retornar ao ponto principal: afastar e aproximar como forma de conhecer.
Um ano depois de Drácula, o britânico H. G. Wells publicaria “The war of the worlds”: o império britânico conheceria, nas últimas décadas do século XIX, um grande número de “narrativas de invasão”. Mas esta linha de pensamento poderia conduzir a uma interpretação bastante mecânica, apesar de sua relevância: o estrangeiro que prenuncia a decadência do Império Britânico, trazendo ao seu interior a doença e a morte – da mesma forma o filme de Murnau poderia ser lido como um reflexo da primeira guerra mundial, dos ressentimentos germânicos decorrentes do tratado de Versalhes e da Constituição de Weimar.
Seria possível, neste sentido, pensar o Reino Unido, submetido ao longo reinado da Era Vitoriana, em um contexto maior, de crise de mentalidade européia, valendo-se do referencial teórico inaugurado por Paul Hazard e do qual a obra de Koselleck seria, de certa forma, tributária. O Império Britânico, ao alcançar os seus limites territoriais, mediado por uma idéia civilizacional, talvez tenha passado a pensar a invasão como uma das próprias articulações de sua identidade.
A literatura de viagem, como a de Pierre Bayle, analisada por Hazard, acendeu ainda mais a chama da curiosidade do contato com o outro: as turquerías se tornam uma febre, e Rossini, depois de escapar do destino de se tornar um castratti, compõe a ópera bufa “O turco na Itália”; no mesmo sentido, as “óperas de resgate”, como “A fuga do harém”, de Mozart.[9]
Os ingleses viajavam: era o complemento da sua educação; os jovens senhores saídos há pouco de Oxford e Cambridge, bem providos de guinéus e flanqueados por um sábio preceptor, galgavam o estreito e empreendiam a grande volta”.[10]
Um exercício bastante prolífico ainda parece ser pensar sobre a Irlanda, cuja condição é bastante peculiar: seria a colônia rasgada em seus fundamentos religiosos ou a periferia da Metrópole imperial, aproximada pela geografia e por comungar, ainda que apenas parcialmente, uma história comum?
Os resultados desta relação são devastadores: Joyce refunda o romance moderno, obrigando seu Ulisses a uma nova viagem, desta vez de apenas um dia. Alienígenas invadem a Terra, monstros terríveis destroem antigos conceitos; as certezas e os limites são rompidos. Bastante difícil não se valer do espanto de Koselleck ao analisar a Revolução Francesa: teria o iluminismo, a Razão humana, culminado com o Terror? [11] Teria gestado, na verdade, um monstro? Um Leviathan de proporções incríveis? Seria este o resultado da Revolução total?
As últimas décadas do reinado da rainha Vitória foram marcadas pelas artes divinatórias: o ocultismo, o mortal, o escuro. O vampiro, antes sempre associado à idéia das pragas, como no “Traité sur les Revenants em Corps, les Excommuniés, les Oupires ou Vampires, Broucolaques de Hongrie, de Moravie, etc”, de 1746, escrito por Dom Augustin Calmet,[12] foi apropriado e reformulado pela geração romântica como um monstro sedutor, avesso aos valores da sua época, cumulado em conotações sexuais: em 1866, Charles Baudelaire imaginaria uma vampira ninfomaníaca, insaciável, em seu “Les Metamorphoses du Vampire”.
A figura de Harker é bastante peculiar no romance de Stoker, o que levou a obra a ser lida como uma simples apologia ao homossexualismo,[13] leitura reforçada pela amizade do autor com outro dublinense, Oscar Wilde, e sua abnegação ao ator Henry Irving, um amigo comum.
Peter Gay localiza o culto à masculinidade no Século XIX: as pessoas refinadas “(...) estavam se tornando (ou já tinham se tornado) afeminadas”, o que “preocupou muitos observadores por toda a era vitoriana”.[14]
O livro de Stoker foi escrito no contexto dos julgamentos de Wilde, e Jonathan não tem, pelo menos nos três primeiros capítulos, uma postura exatamente masculina, e é extremamente correspondido pelo Conde durante os quase dois meses de sua estadia. Se a leitura estiver correta, trata-se de um relato moralista a partir do quarto capítulo: a praga da homossexualidade se espalhou na Inglaterra, mas foi contida tanto no plano coletivo (com a morte de Drácula e o fim da peste), como no plano individual (com Harker, depois de sua iniciação – ou “incubação” – no Castelo, haver se heroicizado como figura masculina), contrária a outra vertente interpretativa que vê o conto do vampiro como a libertação das convenções.
Como a mulher raptada da ópera de Mozart, Jonathan escreve várias vezes em seu diário: “I’m a prisoner”, como se aguardasse ser resgatado por um salvador: a sua estadia no Castelo se assemelharia a uma preparação do herói, um rito de passagem e de descoberta. Conforme a tradição adâmica do Gênesis, a inocência e o conhecimento são incompatíveis: somente depois de ser iniciado, mordido e machucado, Harker irá ao quarto do Conde, e o verá dormindo em um caixão com feições juvenis, transformando-se.
Para além desta leitura, o Conde é um nobre romeno, da linhagem do Dragão (“Dracul”, na língua local), antigo príncipe da Walachia que combateu a invasão dos Otomanos (valendo-lhe a alcunha de “Tepes”, o “empalador”),[15] que vive em uma era de afirmação burguesa e de elogio ao progresso técnico.
Vive e vê a vida a partir de seu ideal nobiliárquico, a partir das relações estamentais baseadas no sangue. É, portanto, avesso às luzes, aos ideais iluministas, que o queimam, pois destroem seu mundo: é o corpo que vive nos distantes Cárpatos, distante das fronteiras da Inglaterra ou da França, da civilização.
Evidentemente, perecerá ao entrar em contato com ela, pois faz parte de um mundo que está morrendo. Daí talvez a remissão ao antigo: carrega sob seus braços um caixão com terra e é mensageiro de uma doença pretérita, extremamente relacionada com o homem medieval. O vampiro portador da peste está entre o passado e o futuro.
III. A morte
E eu vi quando o Cordeiro abriu o primeiro dos sete selos (...), e eis um cavalo branco; e o que estava sentado nele tinha um arco (...) E vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e o Hades o seguia de perto. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras da terra (...) Quando, enfim, abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por cerca de meia hora. Eu vi os sete Anjos que assistem diante de Deus. Foram-lhes dadas sete trombetas”.
Apocalipse (6:1, 2, 8 e 8:1, 2)
Um breve contraponto ao filme de Murnau, para os fins propostos pelo presente trabalho, é “O sétimo selo” (“Det sjunde inseglet”), de 1957, do diretor sueco Ingmar Bergman, no qual o cavaleiro Antonius Block, vivido pelo ator Max Von Sydon, depois de ter sobrevivido a dez anos de cruzadas, no século XII, volta com seu escudeiro à sua terra natal, completamente assolada pela peste. O cavaleiro já havia visitado a Terra Santa como um fiel, mas, diante da praga e da Morte Negra, tortura-se em dúvidas e incertezas: e se não houver um Deus? A possibilidade de uma resposta negativa a esta pergunta lhe parece insuportável. Mas como insistir nesta existência se ninguém lhe fornece as provas necessárias, sequer com a aproximação de seu próprio fim?
Ao se encontrar com a morte, propõe-lhe uma partida de xadrez. Sabe que sua consorte é exímia enxadrista, conforme viu nas pinturas, mas pretende ganhar tempo para realizar algo importante e significativo. A chance seria encontrada com Jof e Mia (interpretada por Bibi Anderson) que, mesmo diante de todo o sofrimento, conseguem ter alegria e esperança na vida. Graças à tentativa do cavaleiro, são salvos da morte e podem fugir com seu filho para longe do foco da doença.
No início, a Morte declama um trecho do capítulo oitavo do livro das revelações, ao som da cantata Carmina Burana, de 1937 (parte da trilogia formada também pela Catuli Carmina, de 1943, e pela Trionfi dell’Afrodite, de 1952), composta pelo Alemão Carl Orff a partir do códex de poesia medieval publicado em 1847 pelo bavariano, especialista em dialetos, Johann Andreas Schmeller, e gravado por Ferenc Fricsay. Bergman conta que:
“Carmina Burana tem como base canções de viajantes medievais, dos anos da peste e da guerra, quando bandos de gente sem teto percorriam o país (...) A idéia dessa gente que vivia a queda da civilização e da cultura (...) achei ser matéria sedutora e, um dia, escutando o coro final (...) veio-me esta idéia: meu próximo filme tratará deste tema”.[16]
Antonius Block acorda e lava seu rosto nas ondas – está agora completamente desperto, testemunha e ator do acontecer. Sua oração matinal é expressiva, mas não se vale de nenhuma palavra. Seu escudeiro é um incréu e não vê como insuportável a idéia de não haver um Deus; muito pelo contrário, está certo da ação do demônio, o que comprova ao narrar um seriado de acontecimentos incríveis.
O escudeiro conversa com o homem que pinta, na entrada de uma capela, a dança da morte. “Por que pinta isso?”, pergunta. A resposta é “Para todos lembrarem que morrerão”. O seu propósito não é deixar as pessoas felizes; mas argumenta que as pessoas olharão à sua pintura, mesmo com tema tão aterrorizante: a morte fascina mais que uma mulher nua.
Veja como as pessoas ficam com o pescoço inchado. O corpo fica todo contraído, e os membros amolecidos (...) Sim, é horrível. A pessoa tenta se livrar do inchaço. Morde as mãos e arranca as veias com as unhas. Seus gritos são ouvidos de longe. Eu o assustei?
Outra pintura, ao fundo: os flagelantes, que crêem ser a peste um castigo de Deus e, entre eles, os que se consideram escravos do pecado: “É horrível. Alguns se escondem para não vê-las passar”. Mais tarde, interrompendo abruptamente uma apresentação alegre de Mia e Jof, os flagelantes imporiam sua presença, lembrando da morte. Homens se chicoteiam, anunciam o fim, mulheres choram, a dor e o sofrimento tomam conta de todos os rostos, que observam, chocados, a sua passagem. Contudo, que se observe: mesmo a canção feliz dos saltimbancos tinha, como tema, o mágico e a onipresença da morte/demônio:
“O cavalo sobe na árvore e canta como galo
A estrada é larga, mas o portão é estreito,
Alguém de negro dança na praia
A galinha anuncia a escuridão
O dia raiou e o peixe está morto
Alguém de negro está agachado na praia
(...)
A serpente vibra no céu
A virgem está pálida, porém feliz como um rato
Alguém de negro corre na praia
(...)
A cabra assobia com seus dois dentes
O som do clarim soa forte
As ondas quebram
Alguém de negro defeca na praia
A porca deita nos ovos e o gato permite
A noite está coberta de fuligem
O escuro permanece
Alguém de negro permanece na praia
Antonius Block, ajoelhado sob um altar com Cristo crucificado - cuja face, disforme, é de uma explícita dor e agonia – e uma pintura com um homem tomado pelo demônio (pintado à esquerda no arco da parede) e sendo exorcizado pela figura santa, à direita, fornece a extensão de suas dúvidas. Enganado pela morte, confessa-se a ela acreditando ser um padre.
(...) Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias”
A morte, fazendo-se passar pelo padre, pergunta-lhe: “Agora quer morrer?”. Block responde: “Sim, eu quero”. Mas espera pelo conhecimento. Ao vê-lo com o olhar fixo para o madeiro cristino, indaga se o que deseja o cavaleiro são garantias.
Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não têm? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que Ele vive dentro de mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa realidade, eu não consigo ficar livre? (...) Quero conhecimento, não fé ou presunção
O cavaleiro completa seu lamento: “Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve”. A resposta indiferente da morte é aterradora: “Talvez não haja ninguém”. Mas como conviver com a morte, insuportável, na ignorância de tudo? A morte replica que as pessoas quase nunca pensam nela. Block recorda que um dia todos terão de olhar na escuridão, ao que ela sorri, e conclui que o medo é a imagem de Deus. Por fim, antes de entregar a sua estratégia de jogo, revela, ainda enganado pela morte, seu propósito em desafiá-la para uma partida de xadrez: para ganhar tempo e realizar algo urgente.
Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido (...) Quero usar o pouco tempo que tenho para fazer algo bom
A peste está presente em todo o filme de Bergman, mas sua tópica é outra. Muito mais intensas, no imaginário retratado em “O sétimo selo”, duas articulações principais: de um lado, a crise religiosa e, de outro, a morte. O diálogo entre estes domínios polariza a narrativa e dá sentido à seleção de eventos.
Sobretudo duas análises desta obra têm predominado. Em primeiro lugar, recorrendo à educação extremamente rígida do diretor pelo pai, pastor protestante, conforme Bergman relatou em sua autobiografia, “A lanterna mágica”, o filme tem sido lido ora como um reflexo da crise religiosa do indivíduo, ora como um libelo contra a dogmática e o fanatismo.
A outra visão leva em conta a situação política européia em 1957: a peste e a presença da morte seriam, em parte, uma manifestação das guerras mundiais. O espanto de Block, que ganha uma sobrevida, ainda que exígua, seria a imagem da própria Suécia, que tanto tentou permanecer impassível frente às monstruosidades cometidas. Seu intento de querer realizar algo importante seria a representação de um país que tenta se redimir de uma omissão – mas é apenas adiar a morte, uma vez que o fantasma da guerra fria começava a se manifestar.
Nenhuma destas leituras parece estar totalmente errada. Sozinhas, contanto, ou sem os devidos cuidados, podem não ser, sobretudo a primeira delas, satisfatórias. Em sua autobiografia, o diretor escreveu:
Como assíduo visitante de Igrejas, tenho contemplado altares, retábulos, crucifixos, vitrais, murais. Neles, vi Jesus e os ladrões, ensangüentados, sofrendo (...) O cavaleiro que joga xadrez com a Morte e a Morte que corta a árvore da Vida, onde um pobre diabo, sentado na copa, torce as mãos em pânico; a morte empunhando a foice como uma bandeira e conduzindo a dança para a Terra das Trevas, enquanto o povo baila de mãos dadas a um saltimbanco que vai deixando para trás (...) algumas Igrejas são autênticos aquários, nelas não se vê nenhum lugar seco, limpo de imagens. Em todo o lado, seres humanos, santos, profetas, anjos, satanás e diabinhos (...) Realidade e fantasia formam uma liga indissolúvel[17]
Como fazer história se realidade e fantasia se confundem de modo indissolúvel? É esta a crise do personagem Block ou do tempo do autor que escreve? E, em segundo plano, como se pautar em um lugar em que sequer a morte tem certeza sobre a existência de Deus? A única segurança é a morte, e todos os personagens da obra parecem somente aguardar pela sua chegada, sobretudo os flagelantes. A concepção de história de Bergman parece se pautar muito mais pelo eixo das representações e da cultura do que pela política.
Evidentemente, a guerra mundial recém terminada e a possibilidade de uma vindoura é de alguma relevância para a construção da obra, sobretudo porque, conforme se referiu anteriormente, o diretor tinha como idéia retratar “essa gente que vivia a queda da civilização”. O resultado foi a peça “O retábulo da peste”, que não conheceu muito sucesso, mas que, mais tarde, seria a base para “O sétimo selo”, gravado em 35 dias. Mais adiante, esta idéia será retomada e questionada em outro plano, o da historicidade.
Uma indução mais: como no poema homérico, o filme retrata o retorno do herói para casa depois de terminada a guerra. Ao final, não por alguma cicatriz, mas por algo em seus olhos, sua esposa o reconhece – são os instantes que precedem a morte. Ela permaneceu no castelo à sua espera enquanto todos foram embora. Block diz que, então, tudo terminou. Não se arrepende de sua viagem, mas está um pouco cansado. A esposa assente, conhece os amigos do marido e todos oram antes da ceia. A oração é a mesma recitada pela morte no começo da trama.
Estão ali Block, sua esposa, o escudeiro com a mulher que salvou do estuprador, com um olhar assustado, o ferreiro e sua esposa infiel, Lisa, a “Kunigunda”. Batem à porta e a morte é saudada por todos, que se apresentam. Atordoado, Block suplica pela presença de Deus, “pois somos pequenos e assustados em nossa ignorância”. O escudeiro pede para que enfim o cavaleiro perceba a inexistência de um salvador. A mulher salva por ele se ajoelha: a única entidade sagrada presente ou possível é a morte. Suas únicas e últimas palavras, agora já não mais assustada: “Chegou a hora”.
Mas como invocar a imagem de Ulisses e de Penélope em um filme de 1954 que nenhuma referência direta faz à Antigüidade, localizando a sua discussão precipuamente na questão da crise religiosa e, como se não bastasse, especificamente cristã? Uma abordagem é possível se pensarmos na representação da realidade na cultura ocidental como mimesis:
Os poemas homéricos (...) são (...) na imagem do homem, relativamente simples; e também o são, em geral, na sua relação com a realidade da vida que descrevem. A alegria pela existência sensível é tudo para eles, e sua mais alta intenção é apresentar-nos esta alegria (...) E eles nos encantam e cativam de tal maneira que realmente compartilhamos o seu viver. Enquanto ouvimos ou lemos a sua estória, nos é absolutamente indiferente que saibamos que tudo é só lenda, que é tudo ‘mentira’. A exprobração freqüentemente levantada contra Homero, de que ele seria um mentiroso, nada tira de sua eficiência; ele não tem necessidade de fazer alarde da verdade histórica do seu relato, a sua realidade é bastante forte”.[18]
O mito e o logos passam a ser confrontados; a experiência de “verdade” se coloca como paradigma unívoco de inteligibilidade:
(...) Tudo isto é completamente diferente nos relatos bíblicos (...) a intenção religiosa condiciona uma exigência absoluta de verdade histórica. A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e Euricléia; ambas são lenda. Só que o narrador bíblico, o Eloísta, tinha que acreditar na verdade histórica da oferenda de Abraão
Como conciliar dois sistemas tão diferentes de pensamento? Adviria daí a angústia de Antonius Block por provas, por garantias, que o relato bíblico não oferecia, aguardando do fiel um ato de fé no momento da aceitação da narrativa como real e verdadeira? Não é impossível ler a crise do cavaleiro no contexto de uma crise dos próprios conceitos de História e de verdade, conforme será feito mais adiante neste trabalho.
IV. Da doença à morte: a sobreposição das fontes
(a) Aquiles, o herói divino: a ira e a peste
A Ilíada é o plano da guerra iracunda[19] e tem, como força catalisadora, a idéia da vingança. Por um instante nos fiemos à “transcriação” de Haroldo de Campos, que chama a Odorico Mendes de “patriarca da tradução criativa”[20] e nominalmente pertencente ao pré-romantismo neoclássico, mestre de Sousândrade, que o chamava de “pai rococó”.[21]
A guerra se estende há quase dez anos. Sem êxito ainda, os aqueus cercam Ílion, tomando as cidades vizinhas, entre elas Tebas de belos muros, a santa cidade do Eecião, conforme posteriormente se revelaria a Tétis em uma confissão lamentosa.
Na divisão da pilhagem e dos despojos provenientes das conquistas de entorno, Criseida cabe ao quinhão do rei Agamêmnon. Contudo, a mulher é justamente a filha de Crises, sacerdote do deus Apolo.
Sentindo-se ultrajado, e carregando consigo as insígnias que eram próprias de sua ocupação, Crises se dirige às embarcações aquéias, onde o chefe de homens se encontra, para “remir com dons a filha”, ou seja, libertá-la mediante troca ou barganha.
A Crises ultrajara o Atreide,
ao sacerdote, o qual viera até as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha,
nas mãos portando os nastros do certeiro Apolo”.
Observe-se que, já de início, Apolo é apresentado como “certeiro”: esta não é a qualidade de um deus da luz ou do belo, mas da divindade vingativa, colérica; a divindade portadora do arco. Assim, pede aos aqueus a libertação de sua filha:
Atreides e outros mais Aqueus de belas cmênides,
Que a vós os deuses dêem, habitantes do Olimpo,
Derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa;
Mas a filha querida resgatai-me, e os dons
Guardai, temendo Apolo, deus flechicerteiro”.
O tom é ameaçador: que Ílion do rei Príamo seja destruída e que os aqueus retornem, vitoriosos, às suas casas, mas que aceitem a troca, ou amargarão as contas com Apolo. Temerosos, sem hesitação os aqueus clamam:
Que se atenda o sacerdote e as galas do resgate se aceitem!
Como saberemos mais tarde, novamente no lamento a Tétis – não se sabe se aumentado por Aquiles, para melhor convencê-la da injustiça cometida – estas galas eram portentosas, em nada pequenas: “(...) trazia dons riquíssimos, visando libertar a filha”.
Agamêmnon, contudo, nega veementemente ceder Criseida e expulsa o velho sacerdote com extrema rudeza, ordenando que nunca mais se aproxime dos seus navios (nem agora, nem nunca mais), desprezando como inúteis as insígnias divinas que portava. Não bastante, adiciona que jamais a libertará, até que fique velha, seja trabalhando no tear ou servindo-lhe ao leito, mas longe da pátria.
O ancião, emudecido, caminhou durante muito tempo pela costa e, já longe dali, passou a orar a Apolo, o filho de Latona:
‘Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisa
E de Cila sagrada, Esmínteo, rei de tênedos.
Se o templo que te ergui merece teu favor,
Se coxas gordurosas te queimei de touros
E de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:
Faze aos Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!’
O deus, que bem o queria, ouviu suas preces e então
“Baixou do Olimpo, coração colérico,
Levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.
À espádua do iracundo retiniam flechas,
Enquanto o deus movia-se, ícone da noite.
Sentou longe das naus: então dispara a flecha”.
No contexto do ataque de Apolo é que se inicia a Ilíada de Homero: incontáveis almas já haviam sido conduzidas ao Hades – mesmo as de valentes e heróis, obrigando os homens a dividir os seus despojos qual “aves rapaces”. Por nove dias as flechas de prata do Arqueiro maltrataram os exércitos com o mal da peste.
A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
O irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
Trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
De valentes, de heróis, espólio para os cães,
Pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
Desde que por primeiro a discórdia apartou
(...) A peste então lavrou no exército: ruína
cai sobre o povo!
(...) Horíssono clangor irrompe do arco argênteo.
Fere os mulos, depois, rápida prata, os cães;
Então, mira nos homens, setas pontiagudas
Lançando: e ardem sem pausa densas piras fúnebres.
Nove dias sibilam flechas pelo exército;
No décimo o Aquileu convoca o povo à Ágora”.
Neste ponto da história, décimo dia de infortúnios, Aquiles convoca uma assembléia para que se discuta como apaziguar a ira do Arcoargênteo (portador do arco de prata). Do alto, inspirado por Hera, fala aos seus e aponta Calcas Testorides, o sábio que recebeu do mesmo Apolo atacante a graça da previsão, a quem pergunta se são oferendas que têm faltado, e se ovelhas e cabras aplacariam a sua ira.
“’Atreide agora – penso – o descaminho oblíquo
Nos frustra e força o passo atrás, se à morte salvos:
Que, simultâneas, guerra e peste aos Aqueus domam.
Vamos, sem mais, ouvir arúspice ou vidente
– oniromante – que o sonhar provém de Zeus.
Que nos explique um tal rancor em Febo Apolo:
Se de omissos nos culpa, em votos, hecatombes;
Se lhe apraz receber de ovelhas e de cabras
Seletas o perfume e nos poupar da peste’”.
Calcas, o sábio, entende o pedido de Aquiles, mas, temeroso de irritar Agamêmnon, pede-lhe proteção.
O atreide, símile divino, ordena ao velho para que se acalme, pois ninguém, enquanto vivo ele estivesse, lançaria as mãos sobre seu protegido, ordenando, assim, que proferisse o seu oráculo.
A história do sacerdote Crises, e de sua filha Criseida, é enfim revelada: somente o seu resgate, isento de qualquer ônus e cumulado em oferendas, aplacaria, talvez, o rancor divino.
Ao ouvi-lo, Agamêmnon, rei amplo-reinante, levantou-se do lugar em que estava, lançando impropérios contra Calcas, a quem chama de amigo do mal, portador de maus augúrios. Como que enojado pela acusação de ser o causador de todo o sofrimento, reafirma não desejar perder Criseida, preferindo-a ao lado de sua esposa, Clitemnestra. Contudo, pressionado, cede, justificando: “quero meu povo salvo, antes que destruído”. Porém, exige algo em troca como compensação.
Aquiles argumenta não haver mais nenhum espólio acumulado que dividir e que, no entanto, assim que Ílion fosse destruída, três vezes, quatro vezes mais os argivos lhe pagariam. O rei afirma não se deixar se enganar com o furtivo engenho do herói de pés velozes e que, se não recebesse sua compensação, tomaria a força – fosse o dele, seu interlocutor heróico, o de Odisseu, ou o de Ájax, à revelia.
Iracundo e sem acreditar no que ouvia, Aquiles repudia a atitude do rei, chamando-o de “ávido de ganhos”, “olho-de-cão”, “grão sem-pudor”, uma vez que, ao final das batalhas vencidas com suas próprias mãos, a parte que lhe cabia era exígua se comparada à dele.
Agamêmnon desdenha o rancor do herói e decide que, em troca de Criseida, irá pessoalmente à tenda de Aquiles armada no acampamento tomar Briseida. Deseja, com isso, provar quem pode mais.
O desafiado queima em angústia e seu coração se parte em dois. Quase arranca a espada do flanco e calcula os passos para abater o rei de um só golpe.
Então, do céu, Atena desce. Enviou-a Hera,
Dos braços brancos, que ama os dois, por ambos vela.
Por trás segura os cabelos louros, só
Visível para ele; ninguém mais a vê”.
A deusa aplaca a fúria do Peleide, argumentando que deve insultar com palavras o rei o quanto queira, mas que deixe em paz a espada, pois “um dia hão de pagar-te o triplo (...) como preço da afronta”.
O herói cede, embainhando o seu gládio. Seguindo o conselho de Atena, lança inúmeros palavrões, e, uma vez resignado, cede Briseida, mas faz um juramento que, mais tarde, seria quebrado à custa de uma dor imensa: não participaria mais da guerra, certo de que os aqueus um dia clamariam por seu nome, por se tratar do melhor entre eles. Depois de novos desafios, dissolve-se a ágora.
As oferendas são feitas a Apolo, e Aquiles, afastado, conta a sua mãe, Tétis, todo o ocorrido, que, desfeita em lágrimas, promete que falará em seu favor com Zeus, o amador de relâmpagos, morador do níveo Olimpo. Aconselha-o a deixar a guerra, conforme prometeu.
É Odisseu quem devolve a Crises sua filha, expondo a Apolo a sacra hecatombe: cumpridos todos os rituais, o sacerdote, satisfeito, roga ao guardião de Crisa e Cila para que livre os dânaos, redimidos, “da peste, mal sem cara, praga que os devora”.[22] Na manhã seguinte, um vento favorável sopra no mastro erguido dos navios aqueus.
Aquiles somente voltaria à guerra por motivo de nova vingança: Heitor, o filho de Príamo, o rei de Ílion, matou seu grande amigo, Pátroclo, causando-lhe uma dor imensa, a ponto de reatar os laços com Agamêmnon (Canto XVI. Patrocléia). Façamos, contudo, outra abordagem do trecho, a partir de uma leitura do II a.C., mais especificamente um vestígio material.
A moeda da figura nº 1, que abre este trabalho, segundo a fonte indicada pelo site da disciplina (cf. figura nº 8), apresenta molde “Antigonéico”, proveniente da região da antiga Ílion.[23]
Data de 163/2 a.C. e se trata de um tetradracma de prata, no formato circunférico, com a cabeça laureada de Apolo representada, de perfil, no anverso, e do mesmo deus, agora de corpo inteiro, também perfilado, dividindo as duas metades da moeda, sobre o diâmetro maior, em posição vertical, portando um arco e uma flecha, no reverso.
Aparentemente, as figuras foram feitas em alto relevo, mediante molde no momento de sua cunhagem e, como era de se esperar, não apresentam perspectiva.
Uma vez que nos deparamos com uma bibliografia um tanto quanto rarefeita sobre o assunto, confrontemos a nossa moeda com outra, com ela extremamente parecida (figura nº 9). Talvez uma busca pelas suas diferenças nos lance luz a esta temporalidade distante que carregam. A representação é a mesma, mas não o desenho (figura nº 10).
 
A segunda moeda, da Figura nº 9, apresenta o corpo de Apolo em uma posição um pouco mais anatômica do que a primeira; trata-se de outro arco, chamado “de limbo bi-curvado” ou “de limbo bicôncavo”.[24] As inscrições também são outras; o material não, continua sendo prata.




Desta peça, recolhemos maiores informações, muitas das quais podem ser aproveitas para a leitura da primeira. A “forma antigonéia” na verdade se deve ao fundador da cidade de “Alexandria Troas”, situada na costa da Ásia Menor, a sudoeste do suposto local da antiga Ílion, o governante chamado Antigonos I Monophthalmos, por volta de 310 a.C.
Nossa fonte informa que os habitantes da nova cidade vieram das proximidades: “Kreben, Kolone, Hamaxitos, Neandria and Skepsis”. A cidade foi renomeada em glória a Alexandre (356 a.C.-323 a.C.), o filho de Filipe II da Macedônia, e seu florescimento perdurou sob o jugo romano.


About a decade after its founding the place was enlarged by Lysimachos, king of Thrace, who renamed it Alexandria in honor of the memory of Alexander the Great. The city flourished and its prosperity continued into Roman times”.
O tetradracma de prata é pertencente ao período de autonomia das cidades que se seguiu à destruição devastadora de Antíoco III, o Magno, da Síria pelos romanos, em 189 a.C. Um ano depois, com o tratado de Apameia, o império selêucida deixou de lado sua influência sobre o Mediterrâneo.
This tetradrachm belongs to the period of the city’s autonomy following the devastating defeat of Antiochos III of Syria by the Romans at the battle of Magnesia in 189 BC”.
Contudo, mesmo depois da perda de autonomia, verificamos que, se a datação arqueológica do vestígio material estiver correta, cerca de três décadas depois da queda de Antíoco, moedas eram cunhadas com um deus grego e em língua local. A compreensão do atributo político do objeto passa pelo papel desempenhado pela imagem:
Em uma sociedade em que a escrita era conhecida de poucos, a imagem tinha, sem dúvida, um grande poder de comunicação e a natureza da moeda, feita para circular, contribuía para a difusão das mensagens escolhidas com cuidado pelos responsáveis por sua emissão”.[25]
O texto informa ainda que, na inscrição do reverso desta moeda (que é coincidente com a primeira), lê-se: “Apollo Smintheus”. Mas por que não Febo Apolo, a benfazeja entidade dêitica do sol e da luz? Ou Pítico, o amador de cobras, local escolhido para seu santuário?
Apollo Smintheus is depicted on both sides of the coin, the deity actually being named in the reverse inscription. While the origin of his designation is uncertain, though it may be derived from sminqos, or mouse, whom the Greeks may have connected with disease; Homer, in the opening pages of the Iliad, has Apollo Smintheus bring down plague on the Greeks because of Agamemnon’s arrogance toward Chryses, the god’s high priest. Apollo Smintheus’ temple lay at Chryse, within the territory of Hamaxitos, one of the cities which had provided the original population of Alexandria. The statue of the god, by the celebrated Parian sculptor and architect Skopas, showed him standing with a mouse at his feet
Apolo, conforme depreendemos do Canto I da Ilíada homérica, ali chamado diversas vezes Esmínteo, é deus das pragas. Como da tradição arcaica do beócio Hesíodo, de Homero também se infere a representação ligada à terra e às colheitas: conforme nos explicita a fonte acima transcrita, “Smintheus” provavelmente deriva de “smingos”, “rato”.
Um raciocínio possível seria relacionar o Deus Solar com as estações – de nossa experiência contemporânea leiga, sabemos que há um crescimento da população de ratos no verão e nos períodos de calor.
O transmissor da doença pestosa e o regime cosmológico que rege as colheitas acabariam por se fundir em uma só imagem muito forte e viva àqueles homens. Desta forma, o deus “Caça Ratos”, pai de Ascléplius e protetor contra as pragas, poderia ser o mesmo que as difundisse, uma vez enfurecido.
Daí as expressões homéricas, traduzidas por Haroldo de Campos: o arqueiro, Deus flechicerteiro, o portador do arco, aquele que dispara a flecha. Um vocativo, contudo, merece destaque: “Arcoargênteo”. O arco de Apolo era feito de prata, bem como suas flechas, figurações da praga. Haveria alguma relação com o material nobre e caro utilizado para a cunhagem das moedas?
As moedas metálicas emitidas na Grécia apresentam uma diversidade notável quanto a sua matéria. São conhecidas moedas cunhadas em ouro, em prata, em electrum, cobre, bronze, em orichalque (...) (latão ou cobre amarelo), em potin, chumbo, ferro, sem falar nas moedas não metálicas de couro, porcelana, terracota, madeira e vidro (...) o ouro e a prata foram os metais usados com maior freqüência, vindo depois o bronze”.[26]
A questão nos remete a outra teia de verificações, voltada aos usos monetários.
A coin is a piece of money made of metal which conforms to a standard and bears a design (...) We know nothing about the function of the earliest coinage. Theories that coins were first used to pay mercenaries, or a wider range of standardized payments by and to the state, are consistent with the character and behaviour of the coinage[27]
Outro uso da moeda: o atributo mágico. Apesar de, aparentemente, não haver referências tanto em Hesíodo como em Homero, outras fontes, dentre as quais as arqueológicas, indicam para a existência de um ritual fúnebre de se depositarem moedas nos mortos, que as utilizariam para pagar a travessia do Aqueronte ao Hades para Caronte, o barqueiro.[28]
(b) Ájax, o herói ruinoso: a dor e a morte
A morte dá o tom à história de Ájax: seja a de Heitor, seja a de Aquiles, seja a sua própria.[29]
Uma vez vingado Pátroclo com a destruição de Heitor, o filho de Príamo, enganado por Atena no último canto da Ilíada, é morto Aquiles, o de pés velozes, pela flecha envenenada de Páris. Seu espólio de armas se torna motivo de disputa e discórdia: tratava-se das reluzentes forjas de Hefesto, dom de Tétis.
O curso destes eventos conduziria Ájax Telamônio, a muralha, ao suicídio. Contudo, diferentes versões sobre os últimos momentos da vida do herói taciturno são narradas, das quais selecionaremos apenas duas delas: de trás para frente, na contagem de Cronos – Ovídio e Sófocles.
Primeiro, a de Ovídio: arrogante, discursa o filho de Télamon na assembléia, demonstrando profunda inimizade com Odisseu: “Já levou ele o prêmio desta contenda, porque, ainda que seja vencido, saber-se-á que concorreu comigo”. Continua seu raciocínio alegando ser descendente de Zeus, e que o laércio, desonrado, que se recordassem os ali presentes, fingiu loucura em Ítaca, seu reino, para não guerrear em Ílion, tendo sido desmascarado somente pela astúcia de Palamedes.
Assim, argumenta que Odisseu sequer agüentaria o peso do elmo sobre sua cabeça, ou a pesada lança aquiliana em seu pulso; sequer o escudo com o desenho das cidades da paz e da guerra forjado por Hefesto nos braços. Arremata o discurso trazendo à memória sua luta contra Heitor: “Sabeis qual foi o êxito da luta: não fui vencido”.
O itacense se ergue, contrapondo Ájax: têm ambos igual descendência de Zeus. De outra sorte, foi ele, Odisseu, quem reconheceu Aquiles em Ciros, implantando entre os presentes das mulheres suas armas. Ademais, os feitos do herói seriam pura decorrência de seus atos, pois foi ele quem o encorajou a tornar a empunhar o gládio e, pois, “Fui eu que vos dei quem pudesse abater o terrível Heitor (...) Essas armas reclamo-as eu”. Não só: onde esteve Ájax nos nove primeiros anos da guerra? O senhor de Ítaca exibe as suas cicatrizes da batalha, enquanto que o outro estava ileso. Foi ele quem carregou o corpo de Aquiles? E explica: desviaram-se da guerra, ele pelo amor a Penélope, o peleide pelo pranto de Tétis.
Loquaz, inegavelmente, o Odisseu de Ovídio. Contudo, o final da história é mais próximo deste ponto do que aquele que imaginaria Sófocles. No texto ovidiano, depois de o pai de Telêmaco receber as armas, uma vez terminado seu discurso, Ájax, perguntando se não quereria o rei também sua espada, magoado, lamenta: “nem se diga que Ájax foi vencido senão pelo próprio Ájax”, e enterra a lâmina, aquecida pelo seu sangue, no peito heróico.
Sófocles inicia sua trama borrifando o cheiro de sangue no ar do acampamento dos aqueus, farejado por Odisseu: estão todos mortos, espalhados pelo chão, o gado e seus guardiões. A disputa pelas armas de Aquiles já ocorreu, momentos antes.
Então, diante da estupefação do laércio, surge Atena, reveladora: revela ter sido ela que, para proteger Odisseu, seu protegido, e os atridas, que deliberaram pela entrega das armas, enganou o salamínio, infundo em cólera vingativa, fazendo-o pensar que o rebanho, os bois e os animais, eram os seus contendores.
E pede para que espere, para que veja com seus próprios olhos a loucura jogada contra Ájax, que aparece, portador do látego mortífero. Não deixando que percebesse a presença de Odisseu, pergunta ao telamônio se já estão mortos os atridas. Ao que responde, banhado em sangue de bestas inocentes: “Sim, e de tal modo que não haverá quem possa escarnecer de Ájax”. Completa dizendo que tem Odisseu preso ainda, torturado, para que, uma vez castigado, sangre até a morte, justo preço à desonra. O suposto maltratado, que observa de longe, incólume, chega a apiedar-se do outro.
Atena, incansável, deixa que a cena seja testemunhada por Tecmessa e pelo coro. Com ela dialoga o corifeu, sem poder crer: “É terrível, Tecmessa, o teu relato: o herói atinge o âmago da insânia”. O enganado repete, troando o grito: “Desgraça!”.
Finalmente, Atena deixa o herói se ver entre os animais mortos.
(...) Foi o meu braço um algoz, mas contra animais que não fogem. Ai de mim! Sou escárnio de todos, pois fui eu próprio que me cobri de ignomínia”.
Ou viver honrado ou sem ela à morte: a única solução vislumbrada por Ájax é contestada por sua cativa Tecmessa, mas em vão. Está desesperado o herói, blasfema, pesa a orfandade que se abaterá sobre seu filho Eurísaces e a viuvez da mulher que lhe fala. Distante de todos, porém, próximo ao mar, enterra a espada na areia, de modo a deixá-la com a ponta para o alto. Uma vez tudo preparado, conclama a Zeus para que informe os seus para que lhe prestem os ritos fúnebres, não o deixando à mercê dos animais. A Hermes pede a morte rápida, ao que é atendido. Tecmessa pranteará, depois, o herói ruinoso.
Duas análises mais devem ser feitas antes de nos despedirmos de Ájax Telamônio.
Primeiro, a de seu nome: imerso em tristeza, carrega consigo a dor e a mágoa, cravadas e imiscuídas em sua própria identidade. Ai! Ájax é seu nome! O complemento interjectivo vem bem localizado: “Ai!”, pranteemos sua morte. É, foneticamente, como na língua portuguesa, a expressão da dor. Seu nome em língua aquéia é Αϊας (“Aias”, na transliteração). Na história contada por Sófocles, ao tomar conhecimento do engano a que lhe acometeram os deuses, diz:
Ai! Ai! Quem houvera de pensar que o meu nome concordará, pelo seu som, com os meus males! É, neste momento, que posso exclamar ai!, ai!, duas ou três vezes, tais são os males que me dominam!”.
Em sua guerra contra Ílion pela bela Helena, inventou um “aiar”, pois portador da dor e da loucura; desonrado, destruidor de rebanhos, desafiador dos deuses, lançado tragicamente aos esconsos do Hades pelas suas próprias mãos.
Agora, a imagem denominada “Ájax”, de 1820, pintada por Henri Auguste Calixte César Serrur (1794, Lambersat-1865, Paris), ou, como ficou conhecido, Henri Serrur (cf. Figura 7), atualmente exposta no Museu de Lille.
A pintura, de cores fortes, espanta, primeiro, pela nudez do herói: o guerreiro telamônio está completamente desprovido de sua armadura. Aparenta ser um deus, os braços fortes, o manto vermelho-sangue em uma improvável posição, manipulado pelo vento dêitico a enrolar sua genitália.
Uma mão apóia o corpo na pedra, a outra é divina, aponta, punhos fechados, ao céu, cumulado de nuvens, exceto na parte superior, do lado esquerdo, uma abertura denunciada pelo freixo de luz, como se algum Deus houvesse aberto uma passagem, a pedido do herói para que dissipasse o tal negrume. Odisseu, o rei, tinha razão, vemos o corpo incólume, sem qualquer arranhão. Sua brancura o torna iluminado; é barbado – seriam os imberbes menos másculos? Este não, o nobre salamínio, portador das sandálias, do manto e do elmo êneo.
Serrur estudou na Ecole des Beaux-Arts de Paris, tendo participado de le monde: expôs os seus trabalhos em salons de 1819 a 1850.[30] O contexto é Napoleônico. O romantismo nascente traz à tona a beleza do corpo renascentista. Neste sentido, seria a nudez do herói um indício do erotismo, tal qual aquele das vampiras ávidas por luxúria do gótico inglês?
Parece que seria mais proveitoso entender o quadro inserido no gênero do nu na pintura em um momento em que o rigor cristão o permitia. Da mesma forma, a combinação com os quadros renascentistas, que retomavam a temática mitológica, fez do gênero uma solução, uma vez que uma inspiração ou fonte, a exemplo da geração quinhentista, era a estatuária. As formas do humano, suas fisionomias específicas, teriam sido lidas durante o Renascimento tanto a partir de estátuas, como de moedas e medalhas. A geração de Serrur teve, entre outras, esta leitura como ponto de partida para fazer a sua própria.
O clássico está idealizado na figura: o herói não busca a perfeição de suas próprias formas; já a possui, expressa pelo colorismo limitado pelas formas. Seria esta a pose olímpica helena?
Uma complementação: o rosto do telamônio é furioso, dorido. Ordena ao próprio filho de Cronos para que dissipe as nuvens, e a extensão de sua ordem (sua ordem!) é o gesto de seu braço. E, por mais impressionante que pareça, ali estão as nuvens se dissipando de fato. Está a ponto de resgatar o corpo do amado Pátroclo para dá-lo a Aquiles, símile divino. Está a ponto de, caído em desgraça pela trama de Atena, jogar-se sobre sua espada. Ájax, ruinoso e fascinante, está rodeado pela Moira; a morte o espreita por trás e pela frente, do passado e do futuro. Serrur é responsável por, assim como Zeus altissonante, jogar um raio que ilumine este momento instável e intermediário – este momento de crise.
V. O fio das Moiras, o novelo do historiador: esclareça os caminhos percorridos; separe e dê sentido às leituras sobrepostas
A incrível variedade dos materiais utilizados é justificável para a discussão da tópica escolhida? É possível se movimentar entre elas sem se perder? Porque, evidentemente, não é possível afirmar que Bergman bebeu de Murnau ou este de Ovídio.
Vejamos as principais fontes sobre as quais nos debruçamos, separadas por séculos – ou épocas – para, em seguida, pensarmos cada uma delas inseridas em uma nova dimensão, sensivelmente mais proveitosa ao historiador, articulando-as com a complexa dimensão temporal:
· Canto I da Ilíada, de Homero (cerca de VII ou VIII a.C);
· Testemunho escrito de Sófocles sobre Ájax (V a.C.);
· Tetradracma de prata com a figura do Apolo arqueiro (II a.C.);
· Testemunho escrito de Ovídio sobre Ájax (I a.C.);
· Quadro “Ájax” de Henri Serrur (1820);
· Filme “Nosferatu – uma sinfonia do horror”, de Murnau (1922);
· Filme “O sétimo selo”, de Ingmar Bergman (1956).
François Hartog coloca a questão sobre como se pensar o tempo,[31] propondo um salto do século XX para a Mesopotâmia antiga. Seu objeto serão as formas de tempo ou experiência temporal que pertençam à tradição do saber: “os modos por que se conectam presente, futuro e passado na escrita da história”. A hipótese conformada é complexa: que o ano de 1989 representaria um nítido rompimento do moderno regime de historicidade (regime d’historicité), iniciado no final do século XVIII.
Seu referencial teórico mais explícito é Koselleck. Eis o problema que se coloca: significaria o fim deste regime moderno a impossibilidade de se escrever história do ponto de vista do futuro? Teria esta quebra tornado opaco o tempo aos olhos do historiador? Uma vez localizada esta perplexidade e o sentimento de “falta de orientações”, define a metodologia pela qual procederá: “por uma precisa análise de nosso presente e de nossas relações presentes com o tempo”, bem como pela forma comparativa com outros momentos de crise de regimes de historicidade.
A complexidade está na definição de “regime”: sua noção difere da de época, um simples corte no tempo linear. Pois dela se tem consciência somente depois de sua ocorrência e pode ser usada como recurso de periodização. O regime teria um caráter ativo: é a própria expressão da experiência temporal e organiza o passado em uma seqüência de estruturas. O regime preside o fazer histórico e os modos de vivenciá-lo, é um enquadramento acadêmico da experiência do tempo.
Para tentar compreender a proposta de Hartog, propõe-se um exercício: vejamos um trecho do texto intitulado “A peste em Atenas” (II. 47-54),[32] do ateniense Tucídides (do grego “Θουκυδίδης” – “Thoukydídēs”, 460/455 a.C. – 400 a.C.), que escreveu os oito volumes da “História da guerra do Peloponeso”:[33]
Dizem que a doença começou na Etiópia, além do Egito, e depois desceu para o Egito e para a Líbia, alastrando-se pelos outros territórios do rei. Subitamente caiu sobre a cidade de Atenas, atacando primeiro os habitantes do Pireu, de tal forma que a população local chegou a acusar os peloponésios de haverem posto veneno em suas cisternas (...) descreverei a maneira de ocorrência da doença, detalhando-lhe os sintomas, de tal modo que, estudando-os, alguém mais habilitado por seu conhecimento prévio não deixe de reconhecê-la se algum dia ela voltar a se manifestar, pois eu mesmo contraí o mal e vi outros sofrendo dele”.
Muitas são as possibilidades de abordagem: a preocupação com a origem da peste (teria alguma intencionalidade ao apontar o Egito? Estaria a peste localizada para além de uma fronteira cognoscível pela lógica contemporânea ao historiador e, portanto, mais apreensível pela dimensão mítica?), com a acusação dos atenienses aos seus combatentes, com o regime de águas da polis, baseado em cisternas. Escolhamos outra, contudo, partindo-se da análise desta preocupação: “(...) descreverei (...) a doença (...) de tal modo que (...) alguém mais habilitado por seu conhecimento prévio não deixe de reconhecê-la”.
Descreverei”, diz Tucídides, e, em seguida ao anúncio da metodologia de que se valerá, revela a finalidade: para que alguém que saiba mais tome conhecimento do exemplo ocorrido em Atenas, e não deixe de reconhecê-lo (reconhecer tem dois sentidos, neste caso, mas o primeiro é o mais valorizado: inserir a doença em uma classificação prévia, afeita ao conhecimento do seu leitor; e, uma vez que venha a acontecer novamente, que se erga o registro de seu duplo, localizado no passado).
A escrita é exemplar, pois ensina: trata-se de uma lição para a vida que emana de um evento singular, a exempla que vincula o passado ao futuro e serve como modelo: a “historia magistra vitae”: o passado como referencial.
Mas seria esta a história formulada por Calcas Testorides ao revelar a Aquiles a história de Crises, ultrajado pelo atreide, chefe de homens? Ou aquela cantada pelo aedo/adivinho? Ou não seria a prática adivinatória uma forma de fazer histórico? É inverdade que o aedo perpetue, não deixa esquecer? Evitar a ação da lethe não é o propósito do historiador? Escrever uma poesia contando os feitos de Ulisses não é, por si, oferecer uma hecatombe prenhe de coxas gordas a Mynemosine? Pensemos primeiro na Ilíada:
O primeiro texto que deparamos é a épica com os poemas homéricos (séculos VIII e VII). O mundo épico baseia-se na economia da glória imortal (kléos): concorda-se em morrer na guerra em troca de obter-se glória imortal, por meios dos cantos do poeta inspirado (é disso que trata a história de Aquiles). A épica funciona como uma memória social para um grupo de aristocratas”.
A morte heróica objetada por esta elite homérica perpetua a glória do guerreiro e tem, por conseqüência, a formação de material memorial. Na Odisséia, contudo, a chave parece começar a se inverter: trata-se da memória e da ausência, trata-se da distância de Ulisses e da própria subjetividade. O parágrafo de Hartog emociona e esclarece a um só tempo:
Cena famosa: a Ulisses o cantor dos feáceos canta o episódio do Cavalo de Pau e os feitos do herói. Ulisses põe-se a chorar. Nesses versos, em que Hannah Arendt reconhece bem a primeira narrativa histórica, Ulisses tem uma experiência exterior, a de alguém que observa a história da sua própria vida, deslocando-se da primeira para a terceira pessoa e assim perdendo sua própria identidade (como se estivesse morto). Por meio dessa experiência penosa de distanciar-se à distância de si mesmo ou, por assim dizer, de não se situar no tempo consigo mesmo, pode-se, acredito, descobrir historicidade, como o fez Odisseu. Seu retorno de longa demora o expressa amplamente”.
Séculos mais tarde, o objeto primeiro de Heródoto seria impedir o esquecimento, uma vez que o tempo é o inimigo e a história deve ser contada. O argumento/problema de Hartog consiste em como compreender este modo de fazer história que, em que pese haver sido formulado por Cícero, já estava em curso há muito tempo.
O historiador salta ao renascimento e realiza os seguintes enquadramentos: agitação religiosa e política, advento do novo mundismo, preocupação e ansiedade com a história e com o tempo. Localiza, no Quinhentos, os primeiros questionamentos sobre a concepção de história magistra vitae: Jean Bodin, em 1566, questiona a autoridade do passado (mas se vale do método tucidideano). Loys Le Roy, em 1575, pensa em “começo, florescimento e declínio”, mas vê o presente como superior, o que conduz a certa confusão em suas premissas. Montaigne, em 1580, ao tentar sua crítica, acaba por se valer de uma variedade de exemplos contraditórios e, portanto, autodestrutiva. Questionam a concepção de história, mas nela se fiam, não alcançando um rompimento. Hartog indica como uma possibilidade de explicação para este fenômeno a reciclagem deste modelo autoritário pelas instituições religiosas, bem como a formação das monarquias absolutistas.
O renascimento se situa, portanto, entre dois regimes ou domínios de historicidade. Este interregno se protrai no tempo e é possível vislumbrar os autodenominados philosophes do XVIII proclamando o novo e, ao mesmo tempo, seguindo os padrões tradicionais que os precederam. O novo calendário, elaborado no calor dos acontecimentos, do poeta Fabre d’Eglantine pode ser entendido como expressão do desejo de uma nova concepção do tempo.
Hartog nos traz o curioso exemplo de Napoleão, que colocou um quadro pintado em 1529 por Altdorfer de Alexandre da Macedônia em seu banheiro. Façamos um recuo no tempo: os antigos usam o exemplo da história em si mesmo, imitando o passado para acessar o futuro. É isto que Napoleão parece querer fazer ao olhar Alexandre, esperando, talvez, não cometer os mesmos erros, adaptando seus acertos, suas glórias militares. Arriscamos que até deseje ser um pouco como ele, memorável, heróico. Contudo, seu ato é, também, ao mesmo tempo, a própria afirmação do Estado-Nação francês, ou seja: o ápice da razão que observa, de seu banheiro, o passado obsoleto (admirável sim, não há dúvida, mas obsoleto). Ora, esta premissa é moderna!
A concepção moderna de história, que, por sua vez, seria questionada somente no alvorecer do século XX, narra o unívoco: a história não dá mais uma lição à vida, mas tem o condão de prever o caminho. Congrega em si mesma uma ordem do tempo, a noção de lei ou lógica histórica, bastando encontrar a natureza do mecanismo que a aciona. O passado está velho e é possível sintetizá-lo: à grande síntese, à biblioteca de Babel borgeana, precederá uma fatigante análise. O rio da história tem apenas um curso e não retorna.
O fim dos grandes modelos, contudo, causador de uma enorme perplexidade, escolheu veredas diferentes para pensar a sua condição: os annales de Bloch e Febvre, “com sua ênfase posta no presente”, o existencialismo sartreano, para o qual nada havia por trás do presente, o estruturalismo de Strauss, a noção de que tudo estava perdido, de que não existia futuro para a geração perdida, “o fim das esperanças revolucionárias, a crise econômica de 1974 (...): o presente, e nada além”. O futurismo moderno desembocou suas águas no presentismo: milhares de monumentos se multiplicam depois das grandes guerras, a Inglaterra se torna um museu a céu aberto, Funes perde sua humanidade ao não conseguir esquecer.
“Historia magistra apresentava a história, ou supostamente assim o fazia, do ponto de vista do passado. Pelo contrário, no regime moderno, a história foi escrita, teleologicamente, do ponto de vista do futuro. O Presentismo implica que o ponto de vista é explícita e unicamente do presente
Então, chegou 1989, com a queda de um gigante – as velhas propostas, sejam socialistas, sejam liberalistas, estão de alguma forma derruídas pela implacável experiência do tempo: não só o futuro, mas também o passado se torna imprevisível, as indeterminações explodem em inúmeros pontos de vista e a crise dos paradigmas aflora. Hartog opina, mas deixa a questão em aberto: “(...) o novo, o sobrevivente (se há um), está sendo produzido em outro lugar”, que não a Europa. Mas, apesar de escrevermos neste contexto, voltemos os olhos para as fontes.
De que lugar Murnau filma? Seria possível colocá-lo na análise deste historiador francês? A questão se torna ainda mais complexa se pensamos em Norbert Elias, que antecedeu a proposta da escola de Estrasburgo (ou mesmo Huizinga, com seu belo “Outono na Idade Média”): mas façamos um esforço para romper a rigidez empobrecedora das classificações e, voltando ao pressuposto “europeu” da crise de Hazard resgatada com maestria por Koselleck, deixemos livre o campo da reflexão, rumo a uma proposta que congregue em si as fronteiras anglo-franco-germanas; divisemos os olhos de Europa, por Zeus seqüestrada na forma de um touro branco.
O Drácula/Nosferatu é destruído, pois é o signo pretérito no presente: seja em Stoker, com maior vivacidade, seja em Murnau: vislumbra-se um caminho a ser seguido para vencê-lo, e é progressivo, ordenado. Van Helsing exorciza a história exemplar, cravando-lhe uma estaca de madeira. Como não pensar, no campo das estruturas, do tempo lento, na ação viva de um moderno domínio de historicidade atuando na alegoria do vampiro?
E, para além da análise do filme de Bergman como construto mecânico das grandes guerras que foram e da guerra que poderia estar por vir: a temática é dual, a morte e a crise. O que, afinal, está morrendo? A liberdade? A civilização? Os costumes? Parece-nos que o que morre é a modernidade.
Auerbach bem nos coloca, ao tratar do Homero, a despreocupação com a verdade: embora o diretor sueco eive de verossimilhança seu relato, são outras as suas preocupações. Está claro não haver aqui a lição ou o progresso. Onde estaria, afinal, o curso progressivo, em um mundo completamente decadente e desordenado? Esperança sim, como localizamos em Jöf e Mia, mas não a flecha do tempo. E a lição, onde sequer a Morte tem respostas?
Uma vez colocada a modernidade na pira do fazer historiográfico, não se levanta como um corpo renovado, mas como o Cérbero de múltiplas cabeças, de inúmeros olhos. Abandona Polifemo cego, mas, vendo tantos caminhos, não sabe mais qual deve seguir.
De uma forma ou de outra, atentemos à nossa proposta, que esperamos haver problematizado, em um exercício extremamente proveitoso, com as relações entre peste e morte, passado, presente e futuro, por meio das leituras realizadas, na tentativa (completamente inicial, evidentemente) de inverter a proposição metodológica, seja tucidideana, seja rankeana, de reconstituição dos fatos do passado, objetivando, ao revés, uma abordagem das visões que dele deram conta, em sua multiplicidade: tensionando e afrouxando, como o arco divino.

Proposta do trabalho
(http://www.fflch.usp.br/dh/heros/cursos/antigos/trabalhos2.htm)
OPÇÃO I
Escolher uma imagem dentre as editadas em Heros (site acima).
Identificar as tópicas temáticas compostas pela imagem, situando-as em seu domínio próprio de historicidade.

Criar uma reflexão narrativa articulando as associações induzidas pelas conjunções de imagens com os textos presentes no Site, discernindo criticamente os diferentes âmbitos de historicidade assim sobrepostos e confundidos, de modo a explorar ao máximo as associações com as tópicas temáticas supostas por outras imagens e integrar ao máximo as problemáticas abordadas ao longo do curso.
OPÇÃO II
A mesma proposição da Opção I a partir das questões suscitadas por um (ou mais) dos filmes elencados abaixo (cf. site).








[1] CALVINO, Ítalo, Por que ler os clássicos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1993, 280 pp.
[2] Marc Bloch faria a crítica ao mito das origens em sua obra inacabada de 1944, da qual se seleciona um breve trecho: BLOCH, Marc, Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp. 56-58 et 60. “A palavra origens (...) é preocupante, pois equivoca (…). Será que (…) por origens entende-se as causas? (...) entre os dois sentidos freqüentemente se constitui uma contaminação tão temível que não é em geral muito claramente sentida. Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar. Aí mora a ambigüidade; aí mora o perigo”. E arremata da forma mais pedagógica possível: “Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento (...). O provérbio árabe disse antes de nós: Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais’. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito”.
[3] Devido à completa e absoluta ignorância do autor sobre o assunto, foram utilizados dois manuais supostamente bastante utilizados na área médica (KONEMAN, Elmer W. et all, Diagnóstico microbiológico. Rio de Janeiro: Editora Médica e Científica Ltda., 2001 e GUYTON, Arthur C. et HALL, John E., Tratado de Fisiologia Médica. São Paulo: Editora Elsevier, 2006), com o intuito de não se cometerem erros extremamente crassos neste trabalho ao se realizarem incursões necessárias nas áreas estrangeiras, para além daqueles que eventualmente venham a aflorar no próprio campo da história e das “humanidades”.
[4] KONEMAN, Elmer W. Op. Cit., p. 225. 1. Bubônica. Período de incubação de 7 dias ou menos após picada de pulga infectada. O paciente apresenta febre alta e bulbo dolorido (inchaço inflamatório dos gânglios linfáticos) na virilha (mais comum), axila ou pescoço. É a forma mais leve da peste humana; entretanto, a taxa de mortalidade em casos não-tratados é de 75%, aproximadamente. 2. Pneumônica. Período de incubação menor (2 ou 3 dias); os pacientes apresentam inicialmente febre e mal-estar, seguindo-se sinais pulmonares em 1 dia. A forma pneumônica, em geral, é secundária ao processo bubônico, embora também possa resultar de exposição direta a partículas respiratórias de outro paciente pneumônico ou de gatos infectados. A taxa de mortalidade excede 90% se não tratada. As pessoas com suspeita de peste pneumônica devem receber isolamento respiratório (...) 3. Septicêmica. Nesta forma, 100% dos pacientes apresentam septicemia com cultivos de sangue positivos. Os pacientes desenvolvem erupção hemorrágica e coagulação intravascular devido à presença de endotoxinas”.
[5] O microorganismo é pertencente, na classificação taxionômica, à família das enterobacteriaceae, tribo (VII) das Yersinieae, gênero Yersinia, espécie pestis. Idem, p. 222: “O crescimento ótimo [das colônias deste tipo de bactéria] ocorre entre 25º e 32ºC”.
[6] Idem, p. 223. “Y. Pestis é endêmica em vários roedores, incluindo ratos, esquilos, marmotas, camundongos e coelhos. Existem duas formas da doença: peste urbana, a qual é mantida na população de ratos urbanos, e a peste selvática, a qual é endêmica no oeste dos Estados Unidos (...) O microorganismo é transmitido de roedor para roedor ou de roedor para o homem pela pulga do rato. Nos Estados Unidos, foram informados 362 casos de peste humana no período de 1944 a 1993, a maioria dos quais ocorrida no Sudoeste (...) Durante um período de 10 anos, de 1984 a 1994, foi informada uma média de 11 casos de peste por ano. Entre agosto e outubro de 1994, ocorreu um grande surto de peste humana na Índia, onde foram comunicados 5.150 casos suspeitos de peste pneumônica ou bubônica e 53 mortes (...) A estreptomicina é o antibiótico de eleição para o tratamento (...) as drogas alternativas incluem tetraciclina, cloranfenicol e sulfoamidas”.
[8] É possível encontrar grande quantidade de material sobre o filme em: http://nosferatumovie.com/
[9] Com os limites de uma obra escrita há oitenta anos, que se vale, por exemplo, de relações de causalidade para explicar a revolução de 1789, Hazard continua sendo uma referência central. Conjugado com os estudos de Daniel Mornet, Roger Chartier, Robert Darnton e, sobretudo, Koselleck (que localiza a crise em outro ponto), seu estudo, além de apaixonante, é material de enorme interesse ao historiador, sobretudo ao tratar do caro conceito de crise. HAZARD, Paul, Crise da consciência européia. Lisboa: Edições Cosmos, ?, pp. 7-49.
[10] HAZARD, Paul. Idem, p. 17.
[11] KOSELLECK, Reinhart, Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução: Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro: Editora da UERJ/Editora Contraponto, 1999, p. 150. “(...) Rousseau, que sempre temeu a Revolução que via aproximar-se, foi também o primeiro a denunciar o dualismo secular como ficção. Contudo, ao querer reunir a moral esclarecida ao Estado, preparou como nenhum outro o caminho para a revolução. Também ele permaneceu enredado na dialética do Iluminismo, que, na medida em que avançava no processo de desmascaramento, obscurecia o seu próprio sentido político. A despeito de toda perspicácia política que demonstrou, Rousseau sucumbiu à ficção utópica que os iluministas perseguiram em seu estágio hipócrita”. O denso e difícil texto de Koselleck apresenta uma face bastante eloqüente ao tratar da dialética do iluminismo, bastante central nas discussões da sua época. A forma de governo, inicialmente imaginada por Rousseau, vai se radicalizando: a República das Letras de Pierre Bayle pode enfim governar e, em certa medida, o caminho seria deslocar a soberania do príncipe ao povo. Esta idéia é levada a cabo pelos jacobinos durante o Terror que precedeu a reação do Termidor. Seria então o terror o filho legítimo da ilustração? Como uma idéia fantástica poderia produzir um monstro tão temível e poderoso? Difícil esquecer, ao tratar destas questões, que, no imaginário de Koselleck, alemão, outro Leviathan poderia estar presente: o nazista. Sua conclusão pode até ser datada, mas de uma incrível força polarizadora.
[12] DELUMEAU, Jean, História do medo no Ocidente. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1999, p. 54.
[13] Partindo deste postulado, Valdemar Francisco de Oliveira Filho, em sua tênue dissertação de mestrado, limita a discussão sobre se a obra de Stoker seria “subversiva” ou “conservadora”, depois de uma construção metodológica questionável. Se a suposta homossexualidade de Harker (e de Stoker) é até certo ponto relevante, outras implicações parecem mais ricas como pontos de partida para se pensar a época em que o livro foi escrito. Uma possibilidade interessante, parece-nos, seria perquirir as relações, se existentes, entre os julgamentos de Wilde sobre seu relacionamento com rapazes – dos quais se destaca Bernard Shaw e Alfred Douglas – e a confecção da obra de Bram Stoker, no contexto do Vitorianismo e da afirmação da masculinidade no XIX. (OLIVEIRA FILHO, Valdemar Francisco de, A suspensão da ordem e hierarquia em Dracula, de Bram Stoker, São Paulo, Dissertação de Mestrado sob orientação da Professora Dra. Laura Patrícia Zuntini de Izarra, 2005).
[14] GAY, Peter, O cultivo do ódio. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995, pp. 103-104.
[15] McNALLY, Raymond et FLORESCU, Radu, Em busca de Drácula (e outros vampiros). Tradução: Luis Carlos Lisboa, São Paulo: Editora Mercuryo, 304 p. Não sei até onde acreditar nas informações deste livro, uma vez que omite suas fontes. De uma forma ou de outra, passa também a integrar a própria mitologia em torno da figura do vampiro. Conta que Vlad Tepes foi prisioneiro dos turcos, reinou na Walachia entre 1448 e 1476 e, depois, foi feito refém dos húngaros, seus antigos aliados, por dez anos, uma vez que viam nele uma ameaça à sua hegemonia. Depois de morto, foi sagrado pela Igreja herói devido à luta contra os turcos. Ao que tudo indica, Bram Stoker aproveitou esta personagem incrível para dar verossimilhança ao seu personagem. Duas confirmações se ressentem nesta nota de rodapé: primeiro, a confirmação mínima da existência do Conde Vlad Tepes de Dracul. A segunda, os motivos pelos quais Stoker fez sua escolha. A ausência de ambos, contudo, não compromete a análise no campo das representações.
[16] BERGMAN, Ingmar, Imagens. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996, pp. 227-240.
[17] BERGMAN, Ingmar, A lanterna mágica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, 292 p.
[18] AUERBACH, Erich, “A cicatriz de Ulisses”, In: Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Editora Perspectiva, 1971, pp. 01-20.
[19] VIDAL-NAQUET, Pierre, “A guerra, a morte e a paz”, In: O mundo de Homero. São Paulo, Editora Companhia das Letras, ?, pp. 51-61: “A Ilíada é o poema da guerra. Em caso de necessidade, os próprios deuses intervêm para contrariar os processos de paz”.
[20] CAMPOS, Haroldo de, “Odorico Mendes: o patriarca da transcriação”, In: Odisséia de Homero. Tradução: Manuel Odorico Mendes, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, pp. 9-14.
[21] Cabe observar ainda uma questão de ordem completamente subjetiva: apesar de meu desejo de consultar a tradução de Carlos Alberto Nunes, senti-me mais à vontade com a de Haroldo de Campos, pois por ela li o Canto I pela primeira vez, tendo ficado impressionado com os neologismos e as soluções encontrados pelo poeta, em que pese não haver compreendido, naquela primeira leitura, absolutamente nada da história que se contava. Neste sentido, a tradução de Odorico Mendes utilizada para a leitura de pequenos trechos da Odisséia soou com enorme estranheza. Se o estilo de Odorico nos pareceu tão exageradamente rebuscado como o de Antônio Houaiss na tradução do Ulisses (feliz e recentemente simplificado por Bernardina da Silveira Pinheiro), o de Haroldo soou um pouco mais familiar.
[22] VIDAL-NAQUET, Pierre, Idem. “Muitos guerreiros anônimos são mortos pela flecha de Apolo, como relata o canto I, o que quer dizer que eles morrem de peste. A epidemia começa pelos jumentos e cães – uma epizootia, diríamos hoje – e, depois, atinge os homens. Mas a doença não é descrita em nenhum dos sintomas. Homero não é Tucídedes, que relatará, no século V, a peste de Atenas, após ter sido atingido e sobrevivido. Por outro lado, ela não se espalha entre os troianos. Apolo resolve visar exclusivamente aos homens. Ártemis, que tem poder de morte sobre as mulheres, não intervém. Se Criseida for devolvida ao pai, que é sacerdote de Apolo, a epidemia se interromperá imediatamente. Por certo que Apolo exclama no canto IV: ‘A pele dos aqueus não é de pedra e de ferro’, mas as suas pátrias não arriscam nada”.
[23] Com enorme pesar, constatei que o livro indicado na fonte (BELLINGER, Alfred Raymond, Troy, the coins. ?: Sanford J. Durst, 1979, 219 pp.), que seria bastante importante para esta parte do trabalho, não existe na Biblioteca Central, Florestan Fernandes (FFLCH/SIBI/USP). Contudo, uma pesquisa na Internet possibilitou o acesso aB alguns instrumentos que se revelaram bastante úteis para a análise, como o site . Dele são os breves trechos desta obra ora citados.
[24] O nome contemporâneo foi encontrado em: . O instrumento de guerra, em algum ponto no passado, transformou-se em objeto de esporte. Contudo, não é este o caminho que percorremos neste trabalho.
[25] FLORENZANO, Maria Beatriz Borba, “Pirro, o herói helenístico”, In: A linguagem das moedas: três leituras da iconografia numismática. São Paulo: Museu Paulista/Universidade de São Paulo, 2003, pp. 19-32.
[26] COIMBRA, Álvaro da Veiga, Noções de numismática – Volume I. Numismática Geral. São Paulo: Coleção da Revista de História, nº XI, 1957, p. 118.
[27] HOWGEGO, Christopher, Ancient history from coins – approaching the ancient world. London/New York: Routledge, 1995, pp. 1-23; 39-61.
[28] O mito de Caronte é citado por Pausânias e, no século XIV, retomado por Dante Alighieri.
[29] Este item do trabalho é absolutamente tributário àquele elaborado por Alex Martire, para esta mesma disciplina, no primeiro semestre de 2004, denominado “Ájax – marcas presentes em sua graça”. Apesar disso, obviamente não se abriu mão da consulta às fontes. Utilizamo-nos, para isso, da obra ALMEIDA, Guilherme de et VIEIRA, Trajano, Três tragédias Gregas – Antígone, Prometeu Prisioneiro e Ájax. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997, pp. 177-227. Para as citações de Ovídio, valemo-nos de GRIMAL, Pierre, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução: Victor Jabouille, São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 1993.
[30] Para uma apreciação sobre os salons franceses, como forma de se abordar o quadro de Serrur, cf. a obra de Darnton (DARNTON, Robert, Boemia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 13-45.): a partir da reinvenção de Mornet por Chartier, Darnton retoma a idéia do alto e baixo com a ressalva, central, de que o espaço público se constituiu em uma sociedade ainda não aberta ao conhecimento: o mundo burguês não recebe ou estimula o talento, imerso na mentalidade rígida do antigo regime. O submundo, os “escreventes e rábulas”, e mesmos os letrados de uma “segunda geração” do iluminismo, atraídos pelo mundo anunciado por Voltaire e seus pares, ao partirem da Província à capital, vêem as portas fechadas; nem todos podem se atribuir a alcunha de philosophe como o bom Jean-Baptiste-Antoine Suard e participar de le monde. Assim, a “cambulhada de subliteratos”, criados nas profundezas do submundo intelectual, a exemplo de Marat, ressentida pelo desprezo da “despótica tirania das letras”, conduzem a revolução ao plano dos fatos. Serrur participa dos salons.
[31] HARTOG, François, Regime de historicidade – time, History and writing of history: the order of time. Disponível em, acessado em 13/10/2007.
[32] A partir do texto disponibilizado em . Observação retirada do site: “Transcrito da tradução portuguesa de: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982, p. 102-106. Inicialmente, pretendia-se realizar um item somente para a análise deste texto. Contudo, tendo em vista a exagerada extensão deste trabalho, optou-se por selecionar somente os trechos seguintes para que se explicite a intenção inicial do recolhimento destas fontes, e qual o sentido dado à composição.
[33] Antes, contudo, uma tentativa de contextualização: pairava o fantasma das guerras médicas, travada entre aqueus e os medo-persas, pela disputa sobre um território da Ásia Menor, terminada com a batalha em Platéia. Desde então, as relações entre atenienses e lacedemônios se esgarçavam. O crescimento da liga de Delos, encabeçada por Atenas, com poderosa frota marinha, passou a polarizar com a liga do Peloponeso, de comando espartano, confederação dotada de forte exército. Péricles, atento à inevitabilidade da guerra, fez reservas para um longo combate, para o qual cidades inteiras foram arrastadas por políticas de alianças. Refugiados nas muralhas entre Atenas e o Pireu, conscientes do poder terrestre de seus contendores, os atenienses, confiantes na sua frota marítima, no ano de 430 a.C., logo no início da guerra, foram surpreendidos por uma epidemia, que ficou conhecida como a “Peste do Egito”. A doença, segundo os relatos da época, devastaram quase um terço da população de Atenas.