terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Eu sou o outro do outro



"Quero falar da descoberta que o eu faz do outro (...). Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro" | Tzvetan Todorov, 'A conquista da América'

Este foi o primeiro livro que li como graduando de história, meu batismo inacabado na solitária biblioteca do departamento que na época dava para o pequeno bambual do átrio de entrada do prédio que dividíamos com a geografia.

Quando chovia, as poças de água e o barulho dos bambus estalando suas corcundas lembravam a delicadeza de "Depois da chuva", um filme póstumo de Kurosawa que eu havia acabado de assistir. Eram os anos 2000 e, com o tempo, as prendas da memória se misturam.

O livro estava em uma estante separada das demais, intitulada "obras de referência", e tais dizeres me serviram como um guia ou orientador anônimo. Orientador, aliás, que descobri ter certa dose de razão: consumi em tempo recorde as histórias de Cortez e Montezuma, da escrava Malinche-Malintzin-Marina, a primeira intérprete, da Noche Triste, com a queda de Tenochtitlan, de Sahagún e o Diálogo das Culturas, e fui introduzido, admirado, a um conhecimento novo.

Esta foi, paradoxalmente, também, uma introdução involuntária ao direito, em especial com a controvérsia de Valladolid e o rico duelo de palavras entre o frei Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, algo que eu ainda demoraria para me dar conta.

Trago comigo, passado já um bom tempo desta breve semana dos meus dezessete anos, a lembrança viva desta obra: tanto o maravilhamento com que ela me impactou como também detalhes comezinhos e pormenores, como os nomes, mesmo em nahuatl, que escrevo de memória até hoje, sem precisar consultar. Há certos momentos de inflexão na vida de uma pessoa, e já na porta de entrada da universidade eu tive a sorte de encontrar, solto em uma estante, este livro, um respiro humanista sobre o outro.