terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Eu sou o outro do outro



"Quero falar da descoberta que o eu faz do outro (...). Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro" | Tzvetan Todorov, 'A conquista da América'

Este foi o primeiro livro que li como graduando de história, meu batismo inacabado na solitária biblioteca do departamento que na época dava para o pequeno bambual do átrio de entrada do prédio que dividíamos com a geografia.

Quando chovia, as poças de água e o barulho dos bambus estalando suas corcundas lembravam a delicadeza de "Depois da chuva", um filme póstumo de Kurosawa que eu havia acabado de assistir. Eram os anos 2000 e, com o tempo, as prendas da memória se misturam.

O livro estava em uma estante separada das demais, intitulada "obras de referência", e tais dizeres me serviram como um guia ou orientador anônimo. Orientador, aliás, que descobri ter certa dose de razão: consumi em tempo recorde as histórias de Cortez e Montezuma, da escrava Malinche-Malintzin-Marina, a primeira intérprete, da Noche Triste, com a queda de Tenochtitlan, de Sahagún e o Diálogo das Culturas, e fui introduzido, admirado, a um conhecimento novo.

Esta foi, paradoxalmente, também, uma introdução involuntária ao direito, em especial com a controvérsia de Valladolid e o rico duelo de palavras entre o frei Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, algo que eu ainda demoraria para me dar conta.

Trago comigo, passado já um bom tempo desta breve semana dos meus dezessete anos, a lembrança viva desta obra: tanto o maravilhamento com que ela me impactou como também detalhes comezinhos e pormenores, como os nomes, mesmo em nahuatl, que escrevo de memória até hoje, sem precisar consultar. Há certos momentos de inflexão na vida de uma pessoa, e já na porta de entrada da universidade eu tive a sorte de encontrar, solto em uma estante, este livro, um respiro humanista sobre o outro.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Da Ode à Alegria (An Die Freude) de Beethoven a Rumo à felicidade (Till Glädje) de Bergman


It's a question of joy, you see, not a joy that express itself in laughter, or a joy that says ‘I am happy’. What I mean is a joy that is so great - so particular, that it lies beyond pain and boundless despair. You understand, it's a joy beyond understanding” - Victor Sjöström et Ingmar Bergman.


No início, anuncia-se, de maneira quase indiferente, a morte da esposa e da filha a Stig Eriksson, o marido.

A sequência seguinte poderia ser a cena de encerramento, em que o maestro e amigo, interpretado pelo ator e também diretor Victor Sjöström (o mesmo ator do incrível "Morangos Silvestres") consola o recém-viúvo. Porém, entre os quatro minutos iniciais e a cena final, há o miolo, apresentado na forma de uma grande elipse, que constrói o curso do relacionamento entre os dois músicos ao som da Ode à Alegria da Nona de Beethoven.

Alguns que escreveram sobre esta obra a consideraram marcadamente banal; um mero ensaio de temáticas que seriam melhor desenvolvidas por Bergman em outros filmes, como em "Uma lição de amor" e, sobretudo, em "Cenas de um casamento". Outros lembram que Bergman estava no meio de uma separação amorosa na época das filmagens (seu segundo divórcio, de vários que ainda viriam) o que explicaria muita coisa. E não deixam de ter certa razão.

Se considerarmos o miolo, trata-se de um roteiro bastante banal realmente: um casal de músicos violinistas pertencentes a uma mesma orquestra, sem grandes posses, em constantes dificuldades financeiras, sem grande talento no exercício do seu ofício, sem grande carisma, um marido bastante dependente e imaturo que tem uma jovem amante, uma esposa bastante compreensiva, que busca cuidar dos filhos, que já foi casada e que já abortou, que ama Sig, um casal que passa por crises em seu relacionamento. Nada realmente de especial.

Esta digressão de aproximadamente uma hora e vinte minutos, porém, apesar de compor um arco muito bem resolvido e construído, flertando ora com o melodrama ora com a poesia, com seus excelentes momentos, é apenas o instrumento pelo qual se acessa o significado da dor de Sig, sobretudo nos minutos iniciais, e as palavras de consolo do maestro, na cena final.

O convívio com o cotidiano da vida do casal faz emergir o conteúdo daquilo para o que inicialmente éramos indiferentes, à maneira de um mecanismo empático. O menino é a solidão de Sig, mas é também a de Bergman, uma solidão que transborda da Lanterna mágica, sua autobiografia, de seus problemas familiares, do difícil convívio com seu pai, das suas brigas com Deus – a constante constatação de que estamos sozinhos.

A mediocridade de Sig como violinista, que falha barbaramente ao tentar o cargo de solista, seria então a do jovem diretor, em um dos primeiros filmes de sua longa carreira? Quando filmar é um modo de alcançar as esquinas mais sombrias da alma, Bergman é hábil ao usar como argamassa da produção artística os seus demônios privados.

Quem lê estas anotações deve estar curioso quanto ao título, "Rumo à felicidade" (Till Glädje), pois seria possível se argumentar a esta altura que não se trata de uma história propriamente feliz, mas pesada e melancólica. Retome-se, porém, a ideia de que o argumento do filme reside em suas extremidades, e, se a música de fundo é, não impunemente, a Ode à alegria, a conclusão é a gratidão pela vida, aquela que não se expressa perfeitamente pela linguagem das palavras.

O papel da música, aliás, parece ser central em expressiva parte da obra do diretor sueco. Um exemplo significativo: em "O sétimo selo", a Morte declama um trecho do capítulo oitavo do livro das revelações ao som da cantata Carmina Burana, de 1937 – que é a primeira parte da trilogia composta pelo alemão Carl Orff a partir do codex de poesia medieval, formada também pela Catuli Carmina, de 1943, e pela Trionfi dell’Afrodite, de 1952. Em seu livro Imagens, Bergman conta que a ideia do filme partiu da cantata:
Carmina Burana tem como base canções de viajantes medievais, dos anos da peste e da guerra, quando bandos de gente sem teto percorriam o país (...) A idéia dessa gente que vivia a queda da civilização e da cultura (...) achei ser matéria sedutora e, um dia, escutando o coro final (...) veio-me esta idéia: meu próximo filme tratará deste tema”.

A música é também o tema de fundo de Rumo à felicidade e, a partir destas considerações, é possível se localizar precisamente o tom de gratidão, a que nos referimos, que se imprime à obra: depois de saber da morte de Marta, o maestro explica que a música é uma questão de alegria. Uma alegria que não se expressa em risos, ou a felicidade que diz “Eu sou feliz”, mas que é uma forma de felicidade tão imensa, tão particular, tão espiritual que se encontra além da dor e do desespero sem limites. Uma felicidade além de toda compreensão.

domingo, 13 de maio de 2012

A Comissão da Verdade sem historiadores, "Uma longa viagem", de Lucia Murat e o direito à memória




Há mais de trinta anos foi editada a lei que concedia a anistia a todos que cometeram crimes políticos entre setembro de 1961 e agosto de 1979, semelhante à Ley de Pacificación (1983), à Ley del punto final (1986), e à Ley de Obediencia debida (1987) na Argentina, em que alguns foram absolvidos e outros absolveram a si próprios. Em abril de 2010, a lei da anistia brasileira foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, sob a relatoria do Ministro Eros Grau, ele mesmo preso e torturado em 1972, quando filiado ao Partido Comunista Brasileiro.

Em 11 de maio de 2012, concorrentemente à estreia, no circuito oficial, do filme “Uma longa viagem”, de Lucia Murat, foram nomeados os sete integrantes da Comissão da Verdade, instituída pela Lei 12.528/11 com o propósito de examinar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988. Justifica-se uma comissão da verdade sem caráter punitivo? Justifica-se.

No Brasil de 2012 ainda existem lacunas e até mesmo desaparecidos políticos, como mostram os restos mortais encontrados na Vala de Perus no cemitério Dom Bosco em São Paulo. Conta a historiadora Maria Aparecida de Aquino que, quando algumas das ossadas foram identificadas, uma das mães relatou ter ganhado enfim a permissão de chorar: até então, sentia-se obrigada a aguardar pelo retorno do filho perdido, em estado de suspensão e tortura.

A Comissão, apesar de todas as críticas que merece, a começar pelo nome pretensioso e pela composição de seus membros, desprovida de historiadores, tem o propósito de efetivar o direito à memória, concretizado pela disponibilização ampla de dados e documentos à sociedade e aos pesquisadores. Um direito de acesso às fontes materiais e imateriais. Assim como o filme de Lucia Murat, não se trata de um processo de revanchismo – mesmo porque a anistia prosseguirá hígida e intocada – mas de um longo e delicado processo de reflexão e de cicatrização histórica. No limite, trata-se de permitir que pessoas vivas no país de 2012 possam ter a oportunidade de saber o que aconteceu com seus entes e pares, concedendo-lhes dados para pensar por que as coisas aconteceram da forma como aconteceram.

É sobre este processo intenso e convulsivo dos anos setenta do século XX que trata “Uma longa viagem”. Como observou o ator Caio Blat, algo de biográfico que subjazia nos filmes da diretora – como em “Que bom te ver viva”, de 1989 – pulou para primeiro plano e se escancarou, concebendo algo de novo, a começar pela estrutura duplamente triádica da obra: de um lado, a instigante ideia de uma diretora, um ator, um personagem. De outro, a composição narrativa disposta na forma de um triângulo escaleno: cada um dos três irmãos como vértices que olham e observam os outros dois a partir de ângulos próprios, particulares.

Há um caçula, Heitor, há um mais velho, Miguel, e há Lúcia, militante política no momento mais crítico da ditadura brasileira. Para evitar que Heitor enverede pelo caminho escolhido pela irmã, que termina presa, os pais o enviam para uma longa viagem, enquanto o mais velho se torna médico e mestre em seu ofício. Pessoas vivas e intensas cada qual a seu modo, de um lado bastante diferente da vida.

O filme começa a ser rodado logo depois da morte de Miguel. Seria ele um foco, um ponto fixo de serenidade, convergência e equilíbrio para Lúcia e Heitor, cada um deles um personagem em ebulição? Talvez. Mas a vida tem lá as suas idiossincrasias e o que resulta da perda do irmão mais velho é muito mais do que uma homenagem privada: trata-se de um relato rico, maduro e inovador, que foge com bastante competência das inúmeras armadilhas envolvidas na narrativa de uma trajetória familiar por um de seus membros.

Aquilo que faltou em “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Beto Brant (2011), é justamente o maior trunfo da obra de Lúcia Murat: a montagem parece ser o eixo estruturante de “Uma longa viagem”, pautada por um ponto de partida levemente heterodoxo: a edição das cartas de Heitor à sua família. Trata-se então de um roteiro? Sim, à maneira de uma “intenção de narrativa”, para usar a expressão de Evaldo Mocarzel. Então, estamos diante de um documentário? Parece que sim: parte-se de fontes escritas (cartas), de fontes orais (depoimentos) e da memória pessoal para retratar uma história que, para ser contada, para ser entendida, precisa de um percurso, de uma opção editorial, de verbos e de conectivos.

Há um arco dramático em evidência, o do percurso fundacional de Heitor, entre seus 18 e 28 anos, e há uma digressão necessária, a prisão de Lúcia. O contraste entre a existência coercitivamente estática da irmã e a existência insanamente dinâmica do caçula é temperado pela ausência de Miguel. Lúcia Murat, de maneira perspicaz, percebe que deve relatar sua experiência como contrapeso necessário da história principal: a viagem do irmão mais novo. Ainda assim, não há necessariamente uma oposição entre a militante política presa e o viajante: a errância do rapaz é uma busca espiritual, mas, também, um ato de protesto, de oposição. Seu deslumbre com o mundo não o aliena, não o afasta.

E como contar a história, de que maneira? A partir da leitura de cartas, de depoimentos? Como reconstruir o que o tempo pôs a perder e que agora é uma breve e fugaz reminiscência, mascarada pelas teias do fato, pela traição reconstrutora da memória? Para se valer novamente de Eduardo Mocarzel, “o 'real' precisa de uma construção dramatúrgica para irradiar uma 'verdade' documental”. A objetividade do assunto concreto que será relatado não perde em verossimilhança simplesmente por ser tratado com sensibilidade, ou por meio de recursos dramáticos. Em outras palavras, está claro que se trata de uma obra de autor, historicamente determinada. O documentário, ao ressignificar as suas fontes por meio da reelaboração artística, transforma-se, ele mesmo, em outra fonte – uma fonte audiovisual específica.

Lúcia Murat, de maneira inovadora, encontra a sua própria linguagem, e usa, como instrumento mais interessante, a projeção da imagem, ora para a composição cenográfica, ora para a interação viva com os personagens. Caio Blat, ao comentar sobre a experiência da sua interação com a projeção, fala em uma imagem imersível, que atravessa o corpo do ator. Este mergulho na paisagem projetada produz possibilidades de atuação no intervalo compreendido entre projeção e captação da imagem, imiscuindo um em outro. Como escreveu o crítico Carlos Alberto Mattos:

“Lúcia criou um aparato performático em que o ator recebe sobre o corpo e interage ludicamente com a projeção das imagens. Ou seja, o que usualmente seria linearidade e justaposição vira simultaneidade e sobreposição”.

O momento em que os dois Heitores têm as falas sobrepostas conduz a um dos takes mais instigantes do filme, ora pela atuação do ator-elenco Caio Blat, ora pelo absoluto carisma do irmão da diretora, ora pelo mérito já referido da montagem. O efeito é intoxicante, e a fantasia psicodélica, o espírito beatnik e quase niilista, e a radicalidade de Summertime de Janis Joplin embalam o espectador rumo a uma viagem interior. E qual o papel das drogas para a viagem a que Heitor se propõe? Um papel essencial.

Diante de uma realidade cumulada de extremos, diante da violência de Estado, como reagir? Haveria um sentimento de culpa no caçula ao conhecer o mundo enquanto a irmã estava encarcerada? O receio de que o prumo de sua liberdade fosse recebido pela irmã como uma ofensa a seu status de prisioneira seria um dos motivos pelos quais não lhe escrevia cartas com tanta frequência? Como conviver espremido entre dois abismos – de um lado, o diagnóstico de sua loucura privada e, de outro, a convulsão do seu tempo, dois monstros assombrosos?

As drogas, principal lubrificante social das interações humanas, presentes em quase todas as atividades festivas e religiosas, como recorda o historiador Henrique Carneiro, parecem ter sido colocadas diante do viajante como uma forma eficiente de acesso à realidade e de amenizar o contato com a vida. Heitor as usa, para utilizar a expressão do professor de História, como um “psicoscópio”: um instrumento que permite à alma observar a si por uma lente de aumento – papel semelhante talvez desempenhem as artes, entre as quais o cinema, a meditação, as religiões, ou as práticas lúdicas. Maconha, haxixe, zero-zero. Contudo, cobra-se um preço pela desmedida, e a prudência não é característica do tempo recortado pela obra dos Murat.

Heitor escreve de uma maneira convulsiva em determinados momentos de sua odisseia particular. Pratica a arte epistolográfica, fazendo o relato do viajante, do andarilho, construindo uma geografia das ideias em torno de sua obsessão indefinida. Deseja-se saber mais sobre ele, de vê-lo por mais tempo estampado na tela. Conforme a viagem prossegue, somos João Moreira Salles se lamentando de ter editado Santigo, de não tê-lo deixado falar o que quisesse por um tempo maior: deseja-se ver mais da figura canhestra e carismática de Heitor, de sua vida de absurdos, de sua prisão, de suas andanças, da sua radicalidade sem limites que colhe tudo aquilo que a vida lhe oferece de presente.

Não é um road movie documental; é algo bastante diferente. Retrata a mesma época de “O que é isso companheiro?” de Bruno Barreto de outra perspectiva, e é impossível não fazer o paralelo com o excelente “Diário de uma busca” de Flávia Castro (2010). E por que mais um filme sobre a ditadura militar brasileira, ao lado de “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (2006), “Vlado: 30 anos depois”, de João Batista Andrade (2005), “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton (2007), entre tantos outros? Seria uma postura reflexiva do cinema brasileiro do início do século XXI para tentar entender, pelos mecanismos nem sempre racionalizados da arte, atitudes irracionalizáveis cometidas em um período de exceção? Seria uma maneira delicada de se aproximar de um ponto lacunoso da história ao qual foi negado o pleno e efetivo exercício do direito à memória?

O caçula encerrou sua viagem na Índia, aos 28 anos, quando Lúcia já conhecia a anistia no Brasil, encetando os anos setenta à forma de uma gangorra: liberdade ausente, liberdade total. Confidencia ele ter dado a volta ao mundo duas vezes, e que não se deve fazer isso; perde-se a noção do tempo. Assim como no mito adâmico, Heitor adverte que comer a maçã envolve um preço, pois o conhecimento não pode conviver com a inocência. Porém, em certas situações, comê-la é preciso e necessário: para alimentar a alma; para refletir sobre o passado.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Algumas críticas de cinema



Comecei, em abril de 2012, a escrever de maneira bastante eventual pra o Blog Cineimpressões.

A ideia é fazer a leitura de materiais audiovisuais em geral, mas sobretudo longas.

Colocarei neste espaço o link para as minhas principais colaborações.


Janeiro de 2013
O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012

Dezembro de 2012
Lista dos melhores e piores de 2012 

Julho de 2012
Rumo à felicidade - Ingmar Bergman, 1950

Maio de 2012
Uma longa viagem - Lucia Murat, 2012

Abril de 2012
Trabalhar cansa - Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011

Singularidades de uma rapariga loura - Manoel de Oliveira, 2009


domingo, 22 de abril de 2012

Singularidades de uma rapariga loura: a ruptura com o paradigma romântico, de Eça de Queirós a Manoel de Oliveira



Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez — fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado — pomba, arminho, neve e ouro” – Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura (1873).


Em um filme marcado pela síntese e pela objetividade, com cerca de 60 minutos, Manoel de Oliveira começa cobrando o bilhete de entrada: câmera no tripé, o fiscal autentica os tíquetes de cada um dos passageiros do vagão do trem, operação que toma cerca de 5 minutos. A impressão é a de que se cobra de cada um dos presentes na sala de projeção a preparação do espírito, a transmigração da alma para o espetáculo prestes a começar - um grupo de pessoas se dedicou por anos para construir uma obra: uma hora de atenção é um preço muito modesto que se pede em troca.

Este diretor é um jovem atleta português de 103 anos e portador de rebentos: apenas de 2009 para cá, quatro longas – faz frente a vulcões produtivos como Werner Herzog, porém com 35 anos de diferença do veterano cineasta alemão.

Vejamos da seguinte forma: Macário é um jovem contador tomado de assalto pela beleza de uma rapariga loura – nada é dito impunemente. O filme é uma adaptação do conto homônimo que Eça de Queirós escreveu aos seus 28 anos, e que se tornou um marco da passagem do movimento romântico para o realismo, lançado três anos depois de “O mistério da estrada de Sintra”, seu romance de estréia, dois anos antes de “O crime do padre Amaro” e cinco anos antes de “O primo Basílio”.

Trata-se de um escrito incomum em muitos aspectos, a começar pela forma da narrativa. No conto, tudo é descrito em terceira pessoa por um viajante a quem Macário confidenciou a sua história em uma estalagem – e que, no filme de Manoel de Oliveira, é representado pela interlocutora na viagem sobre trilhos para o Algarve.

Porém, a forma romântica, marcada pela subjetividade idealizadora, de início não é completamente abandonada, pois ainda existe a localização do topus romântico nos trechos em que o próprio Macário realiza o seu relato, em primeira pessoa. Nestas oportunidades, Luísa Vilaça, a loura, é “fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa (...) os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado — pomba, arminho, neve e ouro”. O escritor é sagaz: circunscreve a idealização pessoal do romântico a uma estrutura objetiva, direta e racionalizada.

Quanto mais o jovem se embrenha nos territórios do coração, mais barroco e pouco eficiente se torna: “seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo inglês, firme e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance impaciente dos seus nervos”. Mas a narrativa não se contamina com tal rebuscamento; pelo contrário, impassível, mantém o seu distanciamento: descreve, minuciosamente, a sucessão de fatos, em seus detalhes.

E o diretor, como transportar à tela o complexo mecanismo despertado por esta sutil peculiaridade da linguagem escrita? Em um dado momento do filme, o rapaz beijará a jovem de maneira apaixonada. A câmera não mostra o beijo, mas desliza para a as pernas da moça. O que de longe pareceria um conjunto harmônico de um casal apaixonado, com a garota erguendo para trás involuntariamente uma de suas pernas, olhando-se de perto ganha ares de autômato, de artificioso, caricatural e cômico. A imagem não se envolve; pelo contrário, mantém uma postura analítica da cena romântica que presencia, despindo as aparências.

Macário vive e trabalha com seu tio Francisco, um caixeiro, homem simples e vendedor de tecidos e de miúdos. É um sobrinho trabalhador da Vila Real, onde já se consolidavam os princípios, modos e costumes burgueses: “era louro, com barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do século XVIII e da revolução foi tão vulgar nas raças plebeias”. Do andar de cima da loja do tio é que vê a loura na bancada do outro lado da rua, onde “vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu leque”, e por quem se apaixona.

O filme é transportado para os dias de hoje: ora se vislumbra um computador com tela de LCD na mesa do contador, ora se relata uma viagem de avião pela LAN. Comentam sobre a situação econômica do país, sobre a União Européia, sobre o euro. Neste contexto, portanto, causa estranheza uma garota loura proprietária de um leque. O objeto já causaria estranheza nas mãos de uma garota não abastada no tempo em que Eça de Queiroz escreveu o conto, que registra o estranhamento: 

Leque que preocupou Macário: era uma ventarola chinesa, redonda, de seda branca com dragões escarlates bordados à pena (...). Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos de plebeias de uma rapariga vestida de cassa. Mas como ela era loura e a mãe tão meridional, Macário, com intuição interpretativa dos namorados, disse à sua curiosidade: ‘Será filha de um inglês’. O inglês vai à China, á Pérsia, a Ormuz, à Austrália e vem cheio daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia por que é que aquela ventarola de mandarina o preocupava assim: mas segundo ele me disse — ‘aquilo deu-lhe no goto’”.

Não é possível nem desconfiar neste momento, mas o jogo vai sendo firmado. O leque desperta algo nele, mas tudo parece se imiscuir no seu obscuro objeto do desejo: Macário passará por toda sorte de provações para conquistar a mão da rapariga. Porém, a todo o momento, é feita uma única ressalva: não abrirá mão de seus princípios morais para alcançar os seus objetivos, preferindo recomeçar do zero e atrasar seus planos a deixar de honrar suas dívidas e compromissos.

A altivez moral é reafirmada com as atitudes do tio, que impõe ao sobrinho uma relação igualmente rígida e dura. Ainda que sua rispidez impressione, há ali uma ternura familiar, e, apesar de ser este o personagem que causa os sofrimentos de Macário, privando-o de lar e de emprego, entende o leitor/espectador que a sua intenção teria sido pedagógica: quando tudo está perdido, depois de aprovar as reações do sobrinho às adversidades e aos golpes da vida, ele é que viabilizará o casamento. 

O tio é, contudo, um homem duro, castiço: depois de praticamente expulsar o rapaz da loja diante da rapariga loura, que olhava os tecidos de casimira preta postos à venda, pergunta, “com a sua crítica estreita e celibatária”, se ele estava deixando que ali entrassem pessoas pobres, pois teriam sumido alguns lenços da Índia.

Um dos momentos mais incríveis do filme ocorre durante o serão frequentado pela rapariga loura e sua mãe – que Macário descobre serem as Vilaças – na casa de um tabelião rico na Rua dos Calafates. Eça de Queiroz descreve como as pessoas ali reunidas entoavam poemas românticos, jogavam prendas “do tempo de D. Maria I”, e de como veio um poeta declamar com uma roupa que lhe deixava “o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à [moda da] Restauração”.

Tal como para nós, este ambiente se trata, a um leitor da época, de algo “fora de moda”, esquisito e estranho ao seu tempo. Soa conservador. Manoel de Oliveira neste momento flerta com o maneirismo, dando destaque aos objetos como personagens: revela-nos que o fundador da Ordem tem ligações com Salazar; há ali seu busto em bronze. A câmera desliza sobre o trilho de um cômodo a outro fazendo menção direta ao décor; o mobiliário, os quadros, a louça, o vestuário e os objetos de cena ganham prumo e causam a mesma sensação que estranhamento, de conservadorismo anacrônico, de efeméride. Macário só tem olhos à loura virginal.

O transporte é novamente exitoso: no meio de uma declamação de Alberto Caeiro, o som é entrecortado pelo plano dos acontecimentos, e a atenção é confessamente dispersiva – passamos a nos preocupar com o jogo de cartas com apostas da sala ao lado, que é onde interessa verdadeiramente; local em que se encontram os personagens. No momento em que o jogo começaria, porém, uma peça cai e se perde; ninguém a ouve tinir no chão, acham célebre, os olhos se voltam desconfiados a um dos consortes.

A todo o momento, o leitor/espectador vislumbra o belo, mas, ao mesmo tempo, um profundo desconforto o acompanha: há algo de errado por trás daquilo, algo quase imperceptível, e que o faz até mesmo rir de estranhamento. O alívio consiste no fato de que as coisas, por fim, vão se resolvendo: Macário supera um a um os seus problemas, as suas dificuldades e, por meio de muito trabalho e determinação, consegue concretizar os seus sonhos. O bom moço se fez sozinho, por seus próprios méritos e há uma empatia pelo seu esforço.

Há, contudo, sob o que parece estar perfeito e conquistado, uma história, um eufemismo, uma singularidade. O recado é bastante claro: ninguém vai engolir esta cafonice romântica. Encaminha-se, assim, um desfecho frio, seco e sem rebuscamentos. Na joalheria, ao presenciar a ingrata realidade, Macário parece indagar a si mesmo: seria a gatuna uma vilã? E logo descobre: uma Vilaça.

sábado, 14 de abril de 2012

Trabalhar Cansa e o fim do Festival de Paulínia



"(...) quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio (...).  A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas, ainda, que existe independentemente, fora dele mesmo e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil” – K. Marx


Ontem à noite, sexta-feira treze, assisti no CineSesc Augusta, no contexto do 38º Festival Sesc Melhores Filmes (2012), a um dos filmes mais perturbadores já produzidos no Brasil: “Trabalhar cansa”, primeiro longa da dupla paulista Juliana Rojas e Marco Dutra.

Os diretores parecem ter iniciado a sua parceria ainda como graduandos em audiovisual, por volta de 2003, com “Notívago”, um curta de 13 minutos gravado em vídeo, realizado em conjunto com Daniel Turini como exercício audiovisual para a ECA/USP, sucedido, no ano seguinte, por “O lençol branco”, registrado em bitola 35mm e com 17 minutos de duração, como trabalho de conclusão de curso e selecionado para ser exibido na Cinéfondation em Cannes.

Uma breve pesquisa no site Porta Curtas mantido pela Petrobrás permite o acesso a produções individuais de cada diretor, como “Espera” (2003, 4 minutos), e “Concerto número três” (2004, 13 minutos), ambos de Marco Dutra, e os mais recentes “Vestida” (2008, 15 minutos) e “Para eu dormir tranquilo” (2011, 15 minutos), de Juliana Rojas.

Entre as parcerias, cabe destaque a “Um ramo” (2007, 15 minutos), com grandes pontos de contato com o longa que seria lançado em 2011, contando já com os atores Gilda Nomacce (Gilda), Helena Albergaria (Helena) e Marat Descartes (Otávio). O filme, exibido na mostra Un certain regard, recebeu o Prêmio Découverte Kodak de melhor curta-metragem da Semana da Crítica no 60º Festival de Cannes, realizado no ano de 2007.

Os diretores esperavam que o prêmio facilitasse a busca de parcerias e patrocínios para a produção de “Trabalhar cansa”, projeto que já estava em andamento na época e cujo nome tem origem no livro de poemas “Lavorare stanca” (1936), do italiano Cesare Pavese.

O longa, que custou dois milhões de reais, foi exibido oficialmente no Brasil pela primeira vez no 4º Festival de Paulínia (2011), onde ganhou o Prêmio Especial do Júri. Além de em São Paulo e Campinas, as gravações ocorreram também na cidade, contrapartida para utilização do seu polo cinematográfico.

Cabe o registro de que, quase um ano depois desta premiação, em nota, o prefeito José Pavan Jr. (PSB) anunciou ontem (13/04) que, em 2012, ano de eleições municipais, não ocorrerá o 5º Festival de Paulínia, com a espúria motivação de que o Festival, a partir desta edição, deveria passar a ser 100% patrocinado por empresas privadas e que os recursos serão direcionados para a “área social”.

Observa-se que o prefeito teve os quatro anos de seu mandato para buscar o patrocínio da iniciativa privada para fomentar o evento. Sua falta de êxito deve ser atribuída ou aos efeitos de uma má gestão administrativa, ou às conveniências políticas provenientes do cancelamento, ou à simples ausência de vontade política. Transcrevo, abaixo, lúcido trecho da carta aberta da Abraccine, presidida pelo crítico Luiz Zanin Oricchio, publicada ontem:

Todo esse patrimônio simbólico corre o risco de se perder, ao sabor de conveniências políticas de momento (...) ressaltamos, desde já, que é perda irreparável o cancelamento da edição de 2012. Eventos importantes firmam sua tradição pela continuidade”.

A decisão beira a improbidade e cabe se cogitar se não seria o caso de órgãos como Iphan (no âmbito nacional) ou o Condephaat (no Estado de São Paulo) se pronunciarem acerca da necessidade de preservação do patrimônio imaterial representado pelo evento.

Assim, festivais como o de Tiradentes, realizado desde 1997, o de Gramado, realizado desde 1973, ou o de Brasília, desde 1965, não ficariam ao sabor das conveniências políticas, sujeitos a serem extintos por decreto, e se facilitaria o papel do Ministério Público ao instaurar inquéritos civis e ações civis públicas em defesa dos direitos coletivos ofendidos com a destruição do repertório cultural intangível. Talvez, para além de mecanismos jurídicos, ressinta-se o Brasil de um projeto a longo prazo, de uma política sobre cinema apta a impedir que casos como Paulínia não sejam relegados à história como surtos esquizofrênicos de desenvolvimento.

Feito este registro, necessário devido à premência dos acontecimentos, tornamos às nossas impressões sobre o filme.

Um ramo” já anunciava os principais elementos que seriam desenvolvidos em “Trabalhar cansa”, bem como um gênero que bem poderia ser caracterizado como o horror que brota do banal e do cotidiano. Foram inúmeras as risadas nervosas que escaparam durante a projeção do filme: a matéria prima da tensão é a constatação de que, sob o espectro do rotineiro, ordinário e trivial, subjaz um monstro, um terror demoníaco.

O foco nas relações baseadas na hierarquia artificiosa criada pela divisão do trabalho traz para a superfície uma hostilidade quase insuportável. Qual de nós não se sentiu enraivecido por uma cobrança ou por uma ordem injusta de um chefe grosseiro? Qual de nós não esteve no papel de superior e precisou determinar a conduta de um subordinado? O que no dia a dia parece ser comum e comezinho, ao ser focado pelas lentes da câmera dos cineastas se revela incrivelmente agressivo e angustiante.

A evidente metáfora que se conforma é a de que as relações de trabalho implicam em um “monstro no armário”. Helena, ao perseguir o capital necessário para suprir as necessidades materiais de sua família, põe toda a sua força vital no mercado, que, por sua vez, parece ganhar vida própria, como uma existência externa.

Na cena de viragem do filme, quando retorna, já noite feita, para pegar três latas de creme de leite, o trabalho que a nova comerciante empreendeu em seu estabelecimento passa a se defrontar com aquela que um dia foi a sua proprietária. O horror suspende a respiração do espectador. As luzes se acendem como no saguão de um necrotério. Há alguém lá dentro. Será o ladrão? Um espírito? Um monstro? O medo subrepticiamente desperta nossas sensações mais primitivas.

O que ocorre neste momento, e que ficará cada vez mais evidente no desenrolar da trama é que a vida que Helena dedicou a seu estabelecimento parece ter se voltado contra ela - força estranha e hostil. Ainda que admitamos a existência desta mancha escura e repulsiva mascarada sob o tapete das aparências, e ainda que a exorcizemos, ateando-lhe fogo, a sua lógica precisa apenas se resolve ao submeter aquele que participa do mundo do trabalho a seus desígnios próprios.

Por este motivo, fica bastante óbvio que Otávio, ao ser colocado à margem do sistema, demora a perceber que somente poderá ser a ele reincorporado ao completar seu ciclo de transformação: ao reificar-se, homem máquina resignado, programado para não ler como ilógicas as exigências da engrenagem que compulsoriamente ajuda a mover.

Os diretores submetem aquilo que se chama de fantástico e sobrenatural à composição da narrativa audiovisual, passando a funcionar em “Trabalhar cansa” de forma muito mais consistente e madura do que a mulher-árvore do curta de 2007. E obtêm êxito ao tornar todos os espaços de convivência altamente reconhecíveis ao espectador. Talvez de sua sutil habilidade em fazer transbordar o absurdo, o monstruoso, a partir daquilo que deveria ser trivial decorra a impressão e o nervosismo causados pelo filme e, neste ponto, lembra, ainda que de maneira distante, o ar idiossincrático da chuva de sapos de “Beleza americana” (1999), de Sam Mendes.

Muito da verossimilhança das relações se deve ao cuidado dos diretores na construção dos personagens chamados coadjuvantes e no esforço de buscar a perspectiva de cada um deles na delicada relação hierárquica do mundo do trabalho. Nenhum deles ousa romper os limites do “profissionalismo” e quebrar a marretadas as paredes para expor o que se esconde por trás delas, mas todos parecem estar a um passo do abismo, como se constatassem que sobrenatural, na verdade, não é a fantasia, mas sim a lógica hostil e monstruosa da situação em que se encontram.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Herzog e a caverna dos sonhos esquecidos



"E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?" - Diálogo entre Sócrates e Glauco (Platão. A República. Livro VII)


Assisti a este documentário em duas versões: primeiro pelo modo convencional, em 2D, direto do meu notebook, e, depois, em 3D, em uma boa sala de cinema. É outro filme. Finalmente descobri que o 3D pode ser realmente uma linguagem relevante para o cinema (não é um acessório ou um enfeite neste caso, mas um instrumento). Sem querer me alongar, na primeira cena dentro da caverna caiu meu queixo. A imagem toca, emociona.

Pelo desenvolvimento do registro, suspeito que a intenção inicial do diretor teria sido fazer um documentário sobre pinturas rupestres em geral e filmar as cavernas de Lascaux, mas, quando descobriu que isto não seria possível, resolveu focar suas lentes afiadas (lascadas) no complexo descoberto por Jean-Marie Chauvet, às margens do rio Ardèche, no sul da França.

As limitações de registro são evidentes: os gases tóxicos da caverna permitiam a permanência da equipe apenas uma hora por dia, e desde que não ultrapassassem o limite físico da passarela metálica de 60 cm instalada para possibilitar a caminhada (necessariamente em fila) dos exploradores-cineastas, de modo a comprometer o mínimo possível a preservação.

Talvez estas dificuldades da etapa de produção justifiquem os grandes saltos para os Alpes suevos da Alemanha. Conversei com amigos que sequer perceberam que Herzog havia filmado em mais de uma caverna. Mas, ainda que o recorte escolhido seja de alguma forma questionável, o tema não. As profundezas da terra exercem um verdadeiro fascínio sobre qualquer ser humano: os perigos e as aventuras de Julio Verne, os anões mineradores de Tolkien, a espiritualidade das embriagadas e embriagantes pítias de Apolo e os desabamentos impiedosos da Pachamama; tudo o que há de mais primitivo e espiritual vem à tona ao deslizarmos à escuridão sem fim das fendas da caverna.

Conforme o argumento se desenvolve, o olhar aguçado do historiador, do arqueólogo, acaba cheirando o perigo do anacronismo, das generalizações, e isto é sim um incômodo, uma pedra no sapato que perdura ao longo do filme, que faz perguntar, por exemplo, por que estaria ali um deslocado perfumista no lugar de um profissional da área. Incomodam as perguntas feitas ao jovem pesquisador Julien Monney, as ausências. Existe ali algo que se perde, uma profundidade que poderia ter sido explorada.

Como foram feitas aquelas pinturas paleolíticas? Por quem? Com qual material? Fala-se no neanderthal (e a sua incapacidade simbólica), fala-se no cro-magnon, no sapiens-sapiens, mas qual a relação entre eles? Eles interagiriam, digladiavam-se? Por que o sapiens não representa o neanderthal em suas pinturas? Será indiferente à sua existência? Ou ele se vê como superior, ou como igual? Que lugar seria este?

Um homem se veste como se vestiria alguém àquela época: causa incômodo a teatralização da história, tão própria dos “museus de artes naturais”. Para piorar, o homem toca, com a flauta reconstituída, o hino norte-americano, o que causa outro desconforto: desejaria constatar o domínio das notas da escala musical que permitiria a execução de uma música contemporânea conhecida de todos nós? Desejaria apenas fazer uma piada? Qual a intenção da indulgência da edição ao manter a tomada?

E por que chamar de pré-história se de fato há história (há ali uma narrativa, uma história)? E como o governo deve lidar com a descoberta? Quais os limites entre a pesquisa e a preservação? Quais as diferenças do olhar entre o biólogo, o espeleólogo, o arqueólogo, o turista, o geólogo, o antropólogo, o botânico, o zoólogo ao lidar com a descoberta? Construir um duplo da caverna ao lado dela? E aquele final, o que era aquilo? Filmar uma usina nuclear, uma estufa com espécimes albinos, sugerindo uma alteração evolutiva? Não estaria a narração em voice-over do diretor exageradamente dramática?

Independentemente de como se responda a estas perguntas, é uma obra importante para o cinema, sobretudo pela forma, que é particularmente importante nesse filme, e o diretor traz isso para a discussão. Sob este ângulo, a análise cresce, porque o olhar aqui é o do cineasta. Sua preocupação é com a construção da linguagem, e aqui ele parece ser exímio.

Primeiro ponto, evidente: é um filme em 3D. E se justifica? Sim, basta ver em 2D e depois no cinema. É possível quase esbarrar nas pontiagudas estalagtites e sentir a claustrofobia, a textura da rocha, a quase-aflição do soterrado vivo pelo peso da história e da natureza. Vendo pelo meu notebook, não tinha sequer percebido que o painel dos cavalos tem um declive daquele tamanho. O desenho acompanha a estrutura tridimensional das paredes, tornando relevante a profundidade e alterando os pontos de fuga em uma complexidade graciosa, quase instintiva – e praticamente imperceptível pela projeção indiciária permitida pela dupla dimensão da linguagem convencional. A Vênus coberta pelo Minotauro (única figura humana desenhada na caverna) só fui entender vendo no cinema. A linguagem traz algo próximo da experiência do vivido (falando chato: produz a tal da catarse).

Em segundo lugar: busca inovar na experiência sensorial (acresce à fantasmagoria cinematográfica). O que eu quero dizer com isso: o que antes era apenas a experimentação do 2D ganha profundidade. Ok, mas não é só isso. Ele pergunta: e se fosse possível ir mais além? E se o realizador pudesse acessar outros sentidos do aparelho sensorial do espectador? Se fosse possível ao cineasta dar a conhecer a seu público a corrente de ar frio vinda das rochas que permitiu a três homens adivinharem a existência de uma galeria subterrânea em dezembro de 1994? Aqui é possível dar relevância à presença do perfumista. Qual o cheiro da caverna? Ar preso há milhares de anos, gases tóxicos das plantas subterrâneas, ossadas, fogueiras apagadas, terra úmida? E os barulhos? Que música produziam e ouviam do instrumento de sopro? Cantariam aqueles homens? Gritavam, urravam, gemiam, ganiam? Bateriam palmas? Estalariam a língua contra o palato? E o tato? O calor e o frio? O torpor? E o gosto desta água, podre, ferrosa, envelhecida?

Em terceiro lugar, a construção da obra como problema, e não como dado. A inovação é evidente já fora da caverna. Quando assisti pela primeira vez, como muitos, fiquei pensando como ele teria filmado o primeiro plano-seqüência do “arco do triunfo” natural esculpido na rocha pela erosão e cravado no penhasco no desfiladeiro de Ardèche.

Ao reparar na trepidação, conclui que seria um elaborado sistema de cordas, roldanas e polias, por meio de um sistema de rapel que içasse a câmera, pois grua alguma seria capaz daquilo. Estava errado, evidentemente. Ele faz questão de mostrar isso. E como filmar dentro de uma caverna, com todas as limitações que lhe são inerentes? Com todas as dificuldades? Onde colocar a equipe de filmagem? Ele retira o glamour da cadeira do diretor e registra a "mão na massa", como se nos dissesse: veja, isso não apareceu do nada, alguém veio e fez isso. Este filme, estas pinturas. De outro lado, trata-se, a olhos modernos, de uma galeria de arte permanentemente fechada ao público: a tarefa do cineasta como dar a conhecer, tornar evidente e vivo cresce como um dos motores da narrativa.

Em quarto lugar, o papel da iluminação. A luz trepida e não se fixa porque quer experimentar a trepidação de uma fogueira. Os painéis de LED (três painéis planos de luz fria alimentados por cintos de baterias) buscam simular a visão das figuras para o homem que já não está mais ali. Em sua dança imprevisível, o fogo esconde e dá a ver momentos diferentes da representação pictográfica: ora se vê uma perna do bisão, ora outra - o bisão corre. Talvez alguém narrasse uma caçada mítica, heróica (um sonho hoje já esquecido) aos seus consortes.

Talvez outro alguém batesse as pedras para imitar (representar) os cascos se chocando com o chão, enquanto outro cantasse, enquanto outros assistissem, espectadores. Um protocinema? Ou um cinema muito mais sofisticado do que o nosso, pelo sem-número de experiências que dá a conhecer? Nós tentamos simular profundidade, cheiro, cor, imagem, som, tato. O deles já tinha tudo isto. A concepção central de frames persiste mesmo na era digital. Tal qual o símio que arremessa para cima o instrumento, que se transforma em uma espaçonave no “2001” de Kubrick, questiona-se a própria idéia de progresso ao mesmo tempo em que a reafirma.

Para quem não é de São Paulo, o filme estreou por aqui no contexto da 35ª Mostra Internacional de Cinema, que teve como tema de abertura justamente o Piteco do Maurício de Souza projetando imagens e a ilusão de movimento nas paredes de uma caverna. Nada mais apropriado.

Em quinto lugar, como desdobramento dos parágrafos acima (e muito mais poderia ser dito), a presença do mito platônico como indício da realidade inapreensível; de outro lado, a caverna como figura de linguagem para a sala de projeção, a fogueira como projetor que nos permite o acesso àquilo que, de outra forma, seria inalcançável. Nós somos unidos ao homem que viveu há trinta e dois mil anos: juntos a ele, assistimos, estarrecidos, à maravilha (mirabilia) da pintura. Falamos de nossos mitos vivos e perdidos, de nosso cotidiano e de nossos ancestrais. Assistimos, perplexos, a uma inovação técnica de nossa era. Tal qual o par de crocodilos, observamos a nosso outro (ao nosso igual) como se olhássemos a um espelho.


Links relacionados:

Matéria no The Guardian

Crítica do Luiz Zanin

Nuevas tendencias formales del cine documental en el siglo XXI (El ojo que piensa)