sábado, 14 de abril de 2012

Trabalhar Cansa e o fim do Festival de Paulínia



"(...) quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio (...).  A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas, ainda, que existe independentemente, fora dele mesmo e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil” – K. Marx


Ontem à noite, sexta-feira treze, assisti no CineSesc Augusta, no contexto do 38º Festival Sesc Melhores Filmes (2012), a um dos filmes mais perturbadores já produzidos no Brasil: “Trabalhar cansa”, primeiro longa da dupla paulista Juliana Rojas e Marco Dutra.

Os diretores parecem ter iniciado a sua parceria ainda como graduandos em audiovisual, por volta de 2003, com “Notívago”, um curta de 13 minutos gravado em vídeo, realizado em conjunto com Daniel Turini como exercício audiovisual para a ECA/USP, sucedido, no ano seguinte, por “O lençol branco”, registrado em bitola 35mm e com 17 minutos de duração, como trabalho de conclusão de curso e selecionado para ser exibido na Cinéfondation em Cannes.

Uma breve pesquisa no site Porta Curtas mantido pela Petrobrás permite o acesso a produções individuais de cada diretor, como “Espera” (2003, 4 minutos), e “Concerto número três” (2004, 13 minutos), ambos de Marco Dutra, e os mais recentes “Vestida” (2008, 15 minutos) e “Para eu dormir tranquilo” (2011, 15 minutos), de Juliana Rojas.

Entre as parcerias, cabe destaque a “Um ramo” (2007, 15 minutos), com grandes pontos de contato com o longa que seria lançado em 2011, contando já com os atores Gilda Nomacce (Gilda), Helena Albergaria (Helena) e Marat Descartes (Otávio). O filme, exibido na mostra Un certain regard, recebeu o Prêmio Découverte Kodak de melhor curta-metragem da Semana da Crítica no 60º Festival de Cannes, realizado no ano de 2007.

Os diretores esperavam que o prêmio facilitasse a busca de parcerias e patrocínios para a produção de “Trabalhar cansa”, projeto que já estava em andamento na época e cujo nome tem origem no livro de poemas “Lavorare stanca” (1936), do italiano Cesare Pavese.

O longa, que custou dois milhões de reais, foi exibido oficialmente no Brasil pela primeira vez no 4º Festival de Paulínia (2011), onde ganhou o Prêmio Especial do Júri. Além de em São Paulo e Campinas, as gravações ocorreram também na cidade, contrapartida para utilização do seu polo cinematográfico.

Cabe o registro de que, quase um ano depois desta premiação, em nota, o prefeito José Pavan Jr. (PSB) anunciou ontem (13/04) que, em 2012, ano de eleições municipais, não ocorrerá o 5º Festival de Paulínia, com a espúria motivação de que o Festival, a partir desta edição, deveria passar a ser 100% patrocinado por empresas privadas e que os recursos serão direcionados para a “área social”.

Observa-se que o prefeito teve os quatro anos de seu mandato para buscar o patrocínio da iniciativa privada para fomentar o evento. Sua falta de êxito deve ser atribuída ou aos efeitos de uma má gestão administrativa, ou às conveniências políticas provenientes do cancelamento, ou à simples ausência de vontade política. Transcrevo, abaixo, lúcido trecho da carta aberta da Abraccine, presidida pelo crítico Luiz Zanin Oricchio, publicada ontem:

Todo esse patrimônio simbólico corre o risco de se perder, ao sabor de conveniências políticas de momento (...) ressaltamos, desde já, que é perda irreparável o cancelamento da edição de 2012. Eventos importantes firmam sua tradição pela continuidade”.

A decisão beira a improbidade e cabe se cogitar se não seria o caso de órgãos como Iphan (no âmbito nacional) ou o Condephaat (no Estado de São Paulo) se pronunciarem acerca da necessidade de preservação do patrimônio imaterial representado pelo evento.

Assim, festivais como o de Tiradentes, realizado desde 1997, o de Gramado, realizado desde 1973, ou o de Brasília, desde 1965, não ficariam ao sabor das conveniências políticas, sujeitos a serem extintos por decreto, e se facilitaria o papel do Ministério Público ao instaurar inquéritos civis e ações civis públicas em defesa dos direitos coletivos ofendidos com a destruição do repertório cultural intangível. Talvez, para além de mecanismos jurídicos, ressinta-se o Brasil de um projeto a longo prazo, de uma política sobre cinema apta a impedir que casos como Paulínia não sejam relegados à história como surtos esquizofrênicos de desenvolvimento.

Feito este registro, necessário devido à premência dos acontecimentos, tornamos às nossas impressões sobre o filme.

Um ramo” já anunciava os principais elementos que seriam desenvolvidos em “Trabalhar cansa”, bem como um gênero que bem poderia ser caracterizado como o horror que brota do banal e do cotidiano. Foram inúmeras as risadas nervosas que escaparam durante a projeção do filme: a matéria prima da tensão é a constatação de que, sob o espectro do rotineiro, ordinário e trivial, subjaz um monstro, um terror demoníaco.

O foco nas relações baseadas na hierarquia artificiosa criada pela divisão do trabalho traz para a superfície uma hostilidade quase insuportável. Qual de nós não se sentiu enraivecido por uma cobrança ou por uma ordem injusta de um chefe grosseiro? Qual de nós não esteve no papel de superior e precisou determinar a conduta de um subordinado? O que no dia a dia parece ser comum e comezinho, ao ser focado pelas lentes da câmera dos cineastas se revela incrivelmente agressivo e angustiante.

A evidente metáfora que se conforma é a de que as relações de trabalho implicam em um “monstro no armário”. Helena, ao perseguir o capital necessário para suprir as necessidades materiais de sua família, põe toda a sua força vital no mercado, que, por sua vez, parece ganhar vida própria, como uma existência externa.

Na cena de viragem do filme, quando retorna, já noite feita, para pegar três latas de creme de leite, o trabalho que a nova comerciante empreendeu em seu estabelecimento passa a se defrontar com aquela que um dia foi a sua proprietária. O horror suspende a respiração do espectador. As luzes se acendem como no saguão de um necrotério. Há alguém lá dentro. Será o ladrão? Um espírito? Um monstro? O medo subrepticiamente desperta nossas sensações mais primitivas.

O que ocorre neste momento, e que ficará cada vez mais evidente no desenrolar da trama é que a vida que Helena dedicou a seu estabelecimento parece ter se voltado contra ela - força estranha e hostil. Ainda que admitamos a existência desta mancha escura e repulsiva mascarada sob o tapete das aparências, e ainda que a exorcizemos, ateando-lhe fogo, a sua lógica precisa apenas se resolve ao submeter aquele que participa do mundo do trabalho a seus desígnios próprios.

Por este motivo, fica bastante óbvio que Otávio, ao ser colocado à margem do sistema, demora a perceber que somente poderá ser a ele reincorporado ao completar seu ciclo de transformação: ao reificar-se, homem máquina resignado, programado para não ler como ilógicas as exigências da engrenagem que compulsoriamente ajuda a mover.

Os diretores submetem aquilo que se chama de fantástico e sobrenatural à composição da narrativa audiovisual, passando a funcionar em “Trabalhar cansa” de forma muito mais consistente e madura do que a mulher-árvore do curta de 2007. E obtêm êxito ao tornar todos os espaços de convivência altamente reconhecíveis ao espectador. Talvez de sua sutil habilidade em fazer transbordar o absurdo, o monstruoso, a partir daquilo que deveria ser trivial decorra a impressão e o nervosismo causados pelo filme e, neste ponto, lembra, ainda que de maneira distante, o ar idiossincrático da chuva de sapos de “Beleza americana” (1999), de Sam Mendes.

Muito da verossimilhança das relações se deve ao cuidado dos diretores na construção dos personagens chamados coadjuvantes e no esforço de buscar a perspectiva de cada um deles na delicada relação hierárquica do mundo do trabalho. Nenhum deles ousa romper os limites do “profissionalismo” e quebrar a marretadas as paredes para expor o que se esconde por trás delas, mas todos parecem estar a um passo do abismo, como se constatassem que sobrenatural, na verdade, não é a fantasia, mas sim a lógica hostil e monstruosa da situação em que se encontram.

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