domingo, 22 de abril de 2012

Singularidades de uma rapariga loura: a ruptura com o paradigma romântico, de Eça de Queirós a Manoel de Oliveira



Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez — fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado — pomba, arminho, neve e ouro” – Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura (1873).


Em um filme marcado pela síntese e pela objetividade, com cerca de 60 minutos, Manoel de Oliveira começa cobrando o bilhete de entrada: câmera no tripé, o fiscal autentica os tíquetes de cada um dos passageiros do vagão do trem, operação que toma cerca de 5 minutos. A impressão é a de que se cobra de cada um dos presentes na sala de projeção a preparação do espírito, a transmigração da alma para o espetáculo prestes a começar - um grupo de pessoas se dedicou por anos para construir uma obra: uma hora de atenção é um preço muito modesto que se pede em troca.

Este diretor é um jovem atleta português de 103 anos e portador de rebentos: apenas de 2009 para cá, quatro longas – faz frente a vulcões produtivos como Werner Herzog, porém com 35 anos de diferença do veterano cineasta alemão.

Vejamos da seguinte forma: Macário é um jovem contador tomado de assalto pela beleza de uma rapariga loura – nada é dito impunemente. O filme é uma adaptação do conto homônimo que Eça de Queirós escreveu aos seus 28 anos, e que se tornou um marco da passagem do movimento romântico para o realismo, lançado três anos depois de “O mistério da estrada de Sintra”, seu romance de estréia, dois anos antes de “O crime do padre Amaro” e cinco anos antes de “O primo Basílio”.

Trata-se de um escrito incomum em muitos aspectos, a começar pela forma da narrativa. No conto, tudo é descrito em terceira pessoa por um viajante a quem Macário confidenciou a sua história em uma estalagem – e que, no filme de Manoel de Oliveira, é representado pela interlocutora na viagem sobre trilhos para o Algarve.

Porém, a forma romântica, marcada pela subjetividade idealizadora, de início não é completamente abandonada, pois ainda existe a localização do topus romântico nos trechos em que o próprio Macário realiza o seu relato, em primeira pessoa. Nestas oportunidades, Luísa Vilaça, a loura, é “fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa (...) os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado — pomba, arminho, neve e ouro”. O escritor é sagaz: circunscreve a idealização pessoal do romântico a uma estrutura objetiva, direta e racionalizada.

Quanto mais o jovem se embrenha nos territórios do coração, mais barroco e pouco eficiente se torna: “seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo inglês, firme e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance impaciente dos seus nervos”. Mas a narrativa não se contamina com tal rebuscamento; pelo contrário, impassível, mantém o seu distanciamento: descreve, minuciosamente, a sucessão de fatos, em seus detalhes.

E o diretor, como transportar à tela o complexo mecanismo despertado por esta sutil peculiaridade da linguagem escrita? Em um dado momento do filme, o rapaz beijará a jovem de maneira apaixonada. A câmera não mostra o beijo, mas desliza para a as pernas da moça. O que de longe pareceria um conjunto harmônico de um casal apaixonado, com a garota erguendo para trás involuntariamente uma de suas pernas, olhando-se de perto ganha ares de autômato, de artificioso, caricatural e cômico. A imagem não se envolve; pelo contrário, mantém uma postura analítica da cena romântica que presencia, despindo as aparências.

Macário vive e trabalha com seu tio Francisco, um caixeiro, homem simples e vendedor de tecidos e de miúdos. É um sobrinho trabalhador da Vila Real, onde já se consolidavam os princípios, modos e costumes burgueses: “era louro, com barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do século XVIII e da revolução foi tão vulgar nas raças plebeias”. Do andar de cima da loja do tio é que vê a loura na bancada do outro lado da rua, onde “vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu leque”, e por quem se apaixona.

O filme é transportado para os dias de hoje: ora se vislumbra um computador com tela de LCD na mesa do contador, ora se relata uma viagem de avião pela LAN. Comentam sobre a situação econômica do país, sobre a União Européia, sobre o euro. Neste contexto, portanto, causa estranheza uma garota loura proprietária de um leque. O objeto já causaria estranheza nas mãos de uma garota não abastada no tempo em que Eça de Queiroz escreveu o conto, que registra o estranhamento: 

Leque que preocupou Macário: era uma ventarola chinesa, redonda, de seda branca com dragões escarlates bordados à pena (...). Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos de plebeias de uma rapariga vestida de cassa. Mas como ela era loura e a mãe tão meridional, Macário, com intuição interpretativa dos namorados, disse à sua curiosidade: ‘Será filha de um inglês’. O inglês vai à China, á Pérsia, a Ormuz, à Austrália e vem cheio daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia por que é que aquela ventarola de mandarina o preocupava assim: mas segundo ele me disse — ‘aquilo deu-lhe no goto’”.

Não é possível nem desconfiar neste momento, mas o jogo vai sendo firmado. O leque desperta algo nele, mas tudo parece se imiscuir no seu obscuro objeto do desejo: Macário passará por toda sorte de provações para conquistar a mão da rapariga. Porém, a todo o momento, é feita uma única ressalva: não abrirá mão de seus princípios morais para alcançar os seus objetivos, preferindo recomeçar do zero e atrasar seus planos a deixar de honrar suas dívidas e compromissos.

A altivez moral é reafirmada com as atitudes do tio, que impõe ao sobrinho uma relação igualmente rígida e dura. Ainda que sua rispidez impressione, há ali uma ternura familiar, e, apesar de ser este o personagem que causa os sofrimentos de Macário, privando-o de lar e de emprego, entende o leitor/espectador que a sua intenção teria sido pedagógica: quando tudo está perdido, depois de aprovar as reações do sobrinho às adversidades e aos golpes da vida, ele é que viabilizará o casamento. 

O tio é, contudo, um homem duro, castiço: depois de praticamente expulsar o rapaz da loja diante da rapariga loura, que olhava os tecidos de casimira preta postos à venda, pergunta, “com a sua crítica estreita e celibatária”, se ele estava deixando que ali entrassem pessoas pobres, pois teriam sumido alguns lenços da Índia.

Um dos momentos mais incríveis do filme ocorre durante o serão frequentado pela rapariga loura e sua mãe – que Macário descobre serem as Vilaças – na casa de um tabelião rico na Rua dos Calafates. Eça de Queiroz descreve como as pessoas ali reunidas entoavam poemas românticos, jogavam prendas “do tempo de D. Maria I”, e de como veio um poeta declamar com uma roupa que lhe deixava “o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à [moda da] Restauração”.

Tal como para nós, este ambiente se trata, a um leitor da época, de algo “fora de moda”, esquisito e estranho ao seu tempo. Soa conservador. Manoel de Oliveira neste momento flerta com o maneirismo, dando destaque aos objetos como personagens: revela-nos que o fundador da Ordem tem ligações com Salazar; há ali seu busto em bronze. A câmera desliza sobre o trilho de um cômodo a outro fazendo menção direta ao décor; o mobiliário, os quadros, a louça, o vestuário e os objetos de cena ganham prumo e causam a mesma sensação que estranhamento, de conservadorismo anacrônico, de efeméride. Macário só tem olhos à loura virginal.

O transporte é novamente exitoso: no meio de uma declamação de Alberto Caeiro, o som é entrecortado pelo plano dos acontecimentos, e a atenção é confessamente dispersiva – passamos a nos preocupar com o jogo de cartas com apostas da sala ao lado, que é onde interessa verdadeiramente; local em que se encontram os personagens. No momento em que o jogo começaria, porém, uma peça cai e se perde; ninguém a ouve tinir no chão, acham célebre, os olhos se voltam desconfiados a um dos consortes.

A todo o momento, o leitor/espectador vislumbra o belo, mas, ao mesmo tempo, um profundo desconforto o acompanha: há algo de errado por trás daquilo, algo quase imperceptível, e que o faz até mesmo rir de estranhamento. O alívio consiste no fato de que as coisas, por fim, vão se resolvendo: Macário supera um a um os seus problemas, as suas dificuldades e, por meio de muito trabalho e determinação, consegue concretizar os seus sonhos. O bom moço se fez sozinho, por seus próprios méritos e há uma empatia pelo seu esforço.

Há, contudo, sob o que parece estar perfeito e conquistado, uma história, um eufemismo, uma singularidade. O recado é bastante claro: ninguém vai engolir esta cafonice romântica. Encaminha-se, assim, um desfecho frio, seco e sem rebuscamentos. Na joalheria, ao presenciar a ingrata realidade, Macário parece indagar a si mesmo: seria a gatuna uma vilã? E logo descobre: uma Vilaça.

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