terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A máquina do mundo desconstruída


    

Já há um bocado de anos, em algum mês do final de 2001, eu e dois amigos fomos até a casa de Haroldo de Campos. Exultávamos a chance de levar um convite ao velho poeta para que palestrasse, mas, sobretudo, desbravadores, para que nos mostrasse sua biblioteca, seus livros empoeirados, e talvez até sua primeira obra de bacharelando em direito, Auto do possesso - há livros que a gente admira mesmo sem ter lido.

No caminho, tomei uma decisão dessas de um Cubas, tolas e absurdas que se penduram no trapézio e vão dando piruetas até serem subitamente sabotadas por um feliz lampejo de sanidade: eu confidenciaria a ele uma idéia sobre um livro.
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Por algum motivo inexplicável, A Máquina do Mundo de Drummond significou para mim por muito tempo uma oração que eu predicava em momentos impróprios. Disperso, passeava impunemente na estrada pedregosa de Minas nas aulas de álgebra. Encantado, abria seu majestoso e circunspecto mecanismo durante as explicações de química. E aquele até hoje continua sendo um dos meus poemas favoritos.

Haroldo de Campos havia acabado de dialogar com o texto do itabirano, em uma obra que eu jamais havia lido, translido ou sequer pego em minhas mãos, A máquina do mundo repensada. Obra densa, de maturidade.

Logo que soube do título, tomei por certo: A máquina do mundo desconstruída seria um dia o nome de minha obra mais importante e indômita. Como se vê, dela eu era portador do nome batismal; não me dava conta, na época, faltarem-me ainda o bebê e a pia.

Curioso como as coisas dão de acontecer de um jeito tão diferente daquilo que zelosamente planejamos em algum momento da vida: com o tempo, o que era para ser um livro definitivo se tornou a conjectura de um estudo pretensioso, depois, de um artigo literário, depois, de um ensaio erudito, depois, de um conto, agora um post. Mais um triz e viraria uma reminiscência opaca e fugidia.

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E então chegamos. Conferimos o número, a casa era aquela. Sorríamos uns aos outros. Bora lá.

Quando tocamos a campainha - arrepio - pela porta, que em minhas recordações aparece escura, cheia de adornos e entalhes, a casa pariu uma senhora de certa idade, talvez sua esposa, pessoa amável e bem vestida para quem não espera a visita de estranhos; e acredite, éramos um tanto estranhos.

Um de nós mais corajoso, não eu, disse a que vínhamos, se o professor Haroldo estaria, se poderia talvez nos receber se fosse possível, não avisamos, desculpe o incômodo.

Ela riu, com um ar que provavelmente hoje eu teria lido como zombeteiro, admirado. Sobre nosso embaraço, nossa falta de jeito, de graça. Mas logo recuperou a seriedade e a altivez. Disse está sim, queridos, mas ele está doente, anda meio indisposto. E não pudemos vê-lo naquele dia.

O poeta, já doente, morreu praticamente um ano depois de nossa visita incompleta, e eu jamais voltei à sua casa. Não sei se hoje eu poderia chamá-la precisa, mas certamente esta é uma das lembranças mais vivas do final de minha adolescência.

Gosto de pensar que, quando tocamos a campainha de sua casa, ele traduzia os últimos cantos da Ilíada, e o barulho fez com que perdesse o raciocínio e descuidasse de um verso que, por isso, acabou sendo escrito de outra maneira. Nesta versão patética e linda de nossa rápida visita, participei, ainda que discretamente, de um Canto indistinguível do poema, alterando a história.

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