quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Philip Roth: sou Portnoy, seu puto?



Era para comprar Indignation e American Pastoral, do Philip Roth, e só, mas veio junto um Complexo de Portnoy – o diagnóstico, pois a doença era pregressa conforme constatei nos quatro dias seguintes. Li as primeiras páginas e veja lá: aquele pobre diabo sou eu, ele está falando de mim ali, sem nunca ter me conhecido!

Não sou judeu, não sabia o que era uma shikse, nem que eu tinha um putz, mas muito da vida dele, das coisas que aconteceram com ele são, sabe, minhas. Minha mãe também é a personagem mais inesquecível que eu já conheci e, adivinhe só, tal como para ele, isto não é um elogio. Nunca fiz terapia, mas acabei participando de uma longa sessão privada pela vida de outro homem, de outro advogado (Alex Portnoy é um advogado também! Filho da puta!).

Eu poderia passar horas falando sobre o quanto temos em comum, eu e aquele judeuzinho, horas, meus segredos!

Uma vez eu estava em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, num quarto de hotel com meu avô, um calor terrível, tinha uns sete anos, e ele saiu do banho. Eu acabei vendo o shlong dele. Sabe o que é um shlong? Ele não é judeu, mas tinha um. Imagine uma mangueira de incêndio enrolada com aquele negócio pendurado. Embaixo, “um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída”. A lembrança é minha, mas o testemunho é o de um Portnoy! Eu tive que abrir aspas pra ele falar o que eu vi! Ele estava lá também, irritado com os mosquitos? Onde??

Minha mãe me ligou no mesmo dia e, meu deus como é sábia essa mulher, perguntou se eu estava lavando direito o meu pipizinho. Nesse dia em que eu descobri que queria ter um shlong também! Terá ela lido esse livro? Eu terei sido um experimento, uma espécie de camundongo sociológico dessa pessoa inesquecível? Para Alex, a mãe mandava fazer um bom pi, enquanto que ele queria mijar “uma torrente de urina espessa e forte como uma corda” e, para mim, me mandavam lavar direito o negocinho – e justo neste dia! Não cheira a conspiração?

Eu poderia passar horas, como disse. As banalidades, a obsessão dele, as dúvidas, a culpa... A culpa! Essa incendiária que a todo momento me chama, confundindo meu nome: Rodion Raskólnikov, eu sei o que você fez, seu bandidinho! Não me chamo assim, respondo, cobrindo o rosto com o edredom, virando na cama para o outro lado. E a resposta dela? Não seja respondão, Gregório Samsa, não fale assim comigo, aqui vai mais um pouco de Baygon nas suas antenas sujas, seu garotinho malvado, e não reclame porque isso dói muito mais em mim do que em você!

Macaca é um espetáculo à parte, um bônus, um personagem marcante e tão bem construído a ponto de não se saber o que sentir por ela. Exuberante na cama e ignorante – ignorante mesmo, não daquelas que ficam entediadas com uma cena de filme com mais de cinco segundos de silêncio, mas daquelas que simplesmente não sabem escrever! Ele, o fabuloso Professor Portnoy, salvador das shikses burras, organiza uma lista de leituras de complexidade progressiva, exercitando o seu humanismo pedagógico. Ele conta sobre a saga de Clitemnestra, mesmo sabendo que metade do que dizia estava errado e, adivinhe de novo, ela o admira. Incrível, Alex, essa moça não sabe ler sem mexer os lábios; diga-me, bubala, qual é o seu problema??

É tão curioso ler este livro – acho que não estaria entre os dez melhores que li em minha vida, mas certamente entre os dez mais marcantes. Talvez eu o tenha comprado pelo fato de a tradução ser de Paulo Henriques Britto, que conheci e admirei em Uma casa para o Sr. Biswas, de Naipaul, e depois por outros textos. E pela capa.

O que não deixa de ser uma coincidência, pois este foi justamente o critério altamente sofisticado que usei para comprar no mesmo dia Solar, o novo livro de Ian McEwan; a capa que tem a textura de uma lixa de unha. Obviamente, esse mar de futilidade que guia minhas leituras não me faz merecer um puxão de orelha da culpa, aquela velha conhecida, mas eu sei que ela já está ali me encarando com um ar de preocupação, exclamando algo edificante como, o que será de seu futuro, meu Portnoy dos trópicos?


Matthew Frye Jacobsen’s Roots too


O humor da obra e, sobretudo, a fluência com que escreve, são admiráveis. Acredito que a estrutura, a forma da narrativa, e a idéia de um relato no divã talvez não fossem extremamente originais ou inovadoras nem para a época, mas Roth é exímio em relatar a experiência do vivido – a experiência individual do vivido, para ser mais exato. E é engraçadíssimo, talvez tanto quanto o hilário Pantaleón de Vargas Llosa. Repare bem, não aquele riso subjacente, que suspira pelo nariz, mas o barulhento mesmo, que abre a boca.

Serão vulgares ou mesmo impróprios os pensamentos do respeitado Comissário Adjunto de Nova Iorque? Sua condição judaica o exila das convenções culturais do ocidente? Mas então por que se sente impotente entre seus pares, quando viaja a Tel Aviv? Será contraditório admirar o austero Abraham Lincoln e, ao mesmo tempo, contratar uma garota em Roma para transar com Mary Jane? Qual é então o seu exílio, sua repressão? O atrito entre hormônios e religião? Uma crítica à criação dos pais, à cultura judaica? Aos Estados Unidos? Será apenas uma história interessante e muito bem contada?

Nicola Jennings, The Guardian
Talvez o desenvolvimento destas tópicas encontre certa dificuldade justamente por não terem sido, antes, resolvidas pela própria trama, que por vezes, bastante pontuais é verdade, pareceu hesitante, monocórdia no ritmo e no tema – quem dera escrever como Roth, mas a questão não é essa. Apesar de ficar completamente absorto e impressionado conforme lia, não vi a articulação e as possibilidades de leitura oferecidas pelo Pantaleón, por exemplo, apenas para manter a comparação. Ressalve-se que ambos os autores exploram o gênero da literatura erótica sem nele caber, e com excelentes resultados – diferente da impressão que tive com a Casa dos budas ditosos, de João Ubaldo, que coube com folga sem exceder.

Não tenho dúvida de que Philip Roth seja um autor importantíssimo e, se seu obsessivo interesse por sexo talvez não choque mais pelo menos grande parte de nossa sociedade, sua abordagem sobre fé, relacionamentos familiares, sobre os remordimentos e o lugar do indivíduo em uma sociedade hostil são absolutamente eletrizantes e atuais.

Sempre desconfiei que bons trabalhos literários portassem consigo, de maneira intensa, duas articulações imprescindíveis: de um lado, uma alta carga autobiográfica e, de outro, uma inestimável coragem para enfrentá-la e expô-la em público. Talvez seja justamente esta a chave para o imediato sentimento de identidade a que a leitura induz – porta também, como desdobramento, a idéia de que possivelmente não somos assim tão diferentes em nossas dores, culpas, desejos e perversões.

Outra antiga suspeita que se reafirma: há sim livros de fácil leitura, com grande fluência e, ao mesmo tempo, extremamente bem escritos. As pessoas provavelmente lêem obras ruins por falta de informação, talvez por sequer imaginarem que algumas leituras possam proporcionar reconforto intelectual à alma e, ao mesmo tempo, grandes prazeres.

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