A 35ª Mostra Internacional de cinema de São Paulo, aberta sob a notícia da morte de seu fundador, o crítico Leon Cakoff, realizou uma justa homenagem a Sergei Paradjanov – preso sob Stalin, Brejnev e Andropov – e também a Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar e a não fazer filmes pelos próximos 20 anos, e contou com a presença do cineasta Mohsen Makhmalbaf, diretor, entre outros, de “Um instante de inocência” (1996).
A Mostra exibiu a obra “Olhando Espelhos”, de Negar Azarbayjani (2011), que narra a história de uma taxista e uma transexual no país pós-revolução islâmica. Tanto o filme de Azarbayjani como “A separação”, de Asghar Farhadi (2011), são, evidentemente, filmes de oposição, mas nenhum deles se chocou de frente contra as fraudes nas eleições de 2009 que elegeram Mahmoud Ahmadinejad como fez Panahi, ou desobedeceu à ordem judicial de não fazer filmes por 20 anos como o co-diretor de “Isto não é um filme” (2011), Mojtaba Mirtahmasb, que sofreu apuros para levar o não-filme a Cannes.
Em fevereiro, logo depois de o júri de Isabella Rossellini premiar “A separação” com o prêmio máximo da Berlinale, Farhadi fez votos para que terminasse bem o impasse em torno da prisão de Panahi. O Urso de Ouro trouxe consigo, portanto, a dimensão de uma ausência – ou de um exílio, tão presente na obra premiada e impresso, com suas peculiaridades, em outros artistas do Irã pós-revolução.
Apenas para ficar entre os casos mais conhecidos no Ocidente, Marjane Satrapi, autora de “Persépolis” (2007), iraniana, exilou-se em Viena e hoje vive na França. A história do filme “Cópia fiel”, de Abbas Kiarostami (2010), nascido clássico, passa-se predominantemente na Itália, com atores franceses, sendo o diretor um dos únicos que continuaram em Teerã depois da Revolução de 1979. Como lembra Jorge Furtado, Mohsen Makhmalbaf e sua filha deixaram o país depois de um atentado a bomba e hoje vivem escondidos e em segredo; seus familiares são perseguidos e ameaçados de morte. A atriz Marzieh Vafahmer foi condenada a um ano de prisão e a sofrer 90 chicotadas por participar do filme “Minha Teerã à venda”, de Granaz Moussavi (2011).
Este breve contexto nos fornece alguns subsídios mínimos que nos permitem passar à leitura do filme de Asghar Farhadi.
Em primeiro lugar, a culpa, em seus mais diversos sentidos, é uma articulação importante que ganha destaque ao encontrar, como pano de fundo, a negativa à presunção de inocência, tanto no plano institucional (ao nos defrontarmos com um sistema inquisitivo baseado na cultura do inimigo, em que a negativa dos direitos fundamentais é a regra e a liberdade é a exceção), como no plano das relações (mutuamente acusativas e hostis).
Os fatos que compõem a narrativa são construídos a priori pelos personagens a partir de suas próprias aspirações e conveniências. O espectador presencia a construção das diferentes versões e, ainda assim, não consegue se desemaranhar da teia de contradições e dilemas. É como se Farhadi pedisse gentilmente, por meio da linguagem cinematográfica, para que admitamos estar no (desagradável, porém seguro) papel de julgadores, que não somos inocentes nesta obra, tampouco objetivos ou desinteressados: ao utilizar a perspectiva subjetiva do magistrado, faz com que aquelas pessoas encarem diretamente os nossos olhos e somos tentados a indagar silenciosamente: quem será o culpado diante de mim?
Estamos no contexto da separação matrimonial, mas também entre inúmeras rupturas, que transcendem em muito o caso privado do marido e da esposa. A causa do rompimento está presente durante todo o filme, mas não pode ser dita. Simin questiona como educará Termeh, sua filha, em um país nesta situação. Qual situação? Ela emudece diante do juiz. Mas, se a discussão é muito mais ampla do que um divórcio banal, é justamente no turbilhão de subjetividades doméstico que Farhadi conta a sua história, impedindo, de maneira perspicaz, o distanciamento que talvez auxiliasse o espectador a alcançar uma pretensa depuração objetiva do ocorrido. O observador é posicionado ali na sala da casa, entre uma crise conjugal, um velho doente, uma criança sensível e um mundo de dilemas morais.
Há um atordoamento e uma dificuldade (talvez impossibilidade) de se resolver o problema que se coloca, e estamos diante de uma sociedade em crise, convulsionada. O espectador parece olhar através da doença do pai, perdendo em objetividade e racionalidade e, sempre que busca se posicionar como juiz e sentenciar, encontra-se diante de paradoxos e contradições praticamente intransponíveis. A cada movimento em falso de uma das “partes” (trata-se, sobretudo, de um julgamento), a outra também revela seu quinhão de culpa, e é retomado um equilíbrio insuportável. Afirma-se a todo o momento: ambas as partes são culpadas – o espectador concorda. Então seriam ambas inocentes? Não neste filme de Farhadi; não na Teerã de 2011.
Assim como no Rashomon de Kurosawa, estamos diante de diferentes versões, construídas por cada um dos personagens, que não podem dialogar entre si justamente porque partem de premissas diferentes, de critérios diferentes e, sobretudo, de compromissos diferentes: ora a peça-motriz é a honra, ora a fé e o sectarismo religioso, ora a lógica processual inquisitória iraniana, ora o mero oportunismo. Nenhum dos personagens-autores busca construir sua história tendo como compromisso a verdade; sequer o juiz-acusador, voltado ao formalismo e à realidade processual do sistema jurídico do seu país.
Quase ao final do filme, quando Razieh é instada a jurar sobre o Corão, o critério moral se choca com o compromisso religioso, que prevalece. O marido pede para que ela mantenha a história, negligenciando a verdade que parecia perseguir com determinação cega, pois trabalha a partir da honra: argumenta que sairia humilhado caso não prosseguisse com o juramento. Sua honestidade é desconstruída, assim como foi a de Nader, o acusado. Por fim, ao se dar conta do impasse instaurado, reage com a brutalidade que conhece, pois não há uma solução racional que dê conta da situação ou que a resolva por inteiro de maneira satisfatória.
Pelos olhos de Termeh, a filha do casal que se separa, percebemos algo que se perde: não apenas os laços com a unidade dos pais, do ambiente privado da casa, mas a própria perda da inocência – individual ou coletiva. Volta-se finalmente ao processo inicial, muito mais íntimo do que aquele movido por Razieh: o divórcio entre Nader e Simin. Determina-se que caberá a Termeh decidir com qual dos dois deverá ficar. Independentemente do resultado e da sentença dos julgadores, o peso da decisão sobre este emaranhado indecifrável em que o Irã se encontra é impiedosamente deixado nas mãos da próxima geração.
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