segunda-feira, 31 de maio de 2010

Dentro da coisa e a respeito da coisa

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Em uma aula de história moderna, a professora conversava conosco sobre o poder do acaso: como, por não ter simpatizado com uma pesquisadora californiana, referência na área, em quase toda a sua vida deixou de lê-la - como preferia outros livros ao dela ao freqüentar bibliotecas e livrarias. O quanto não terá se modificado a história moderna em virtude da antipatia da professora, tão admirável quanto a outra?

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...Mas será esta a melhor maneira de se iniciar um post?

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A peça IN ON IT começa por constatar: algumas coisas, como uma peça de teatro, um livro, um blog, são planejadas, pensadas, avaliadas. Outras, obedecem ao acaso, como uma colisão no trânsito.

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Traduttore, traditore: o nome da obra, estranho de plano, seria algo como "por dentro de algo", mas bem poderia ser seccionado em duas fatias - dentro dela estão os personagens; contudo, também a respeito dela eles conjecturam. Para um jovem estudante canadense de inglês, talvez remeta aos mecanismos lingüísticos indicadores do tempo e dos lugares, coisificando-se o at.

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Remete não a despropósito: trata-se do lugar da representação, reconstruindo-se o texto a ser representado representando-o diante da platéia. E trata do tempo da memória, ressignificada a partir do tempo presente que, simultaneamente, ao ressignificá-la, discorre sobre o da ficção.

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Nada disto é confuso quando se assiste a peça. São dois atores de carne-e-osso. Que representam um autor e seu namorado. Este autor mostra a seu parceiro a sua obra e, para fazê-lo, eles a representam. Na obra, um homem descobre que irá morrer e que está sozinho. Autor e namorado, ao comentarem sobre o texto, intercalando representação e comentário, relembram seu próprio passado, a partir de duas indagações: você tem certeza que esta peça deve realmente ser escrita desta maneira?, e nós fomos felizes?

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Particularmente, assisti a peça em meio a uma tentativa de reconciliação de um amor mútuo de longos anos, o que me pegou de surpresa. Tendo sido deliberadamente abordado, comecei a supor formas de abordá-la.

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Os caminhos da linguagem que se interpenetram é uma das maneiras extremamente instigantes para se acessar a obra. A morte e o amor estão ali, as estranhas dinâmicas das relações estão ali, a solidão sem-fim está ali. Discute-se a importância das coisas, a casualidade das coisas.

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Como entender a separação, a morte? E se nós fomos felizes, se devemos realmente continuar juntos? As amarras e dobras da memória são suficientes, ou poderá acaso algo (fortuito) como o acaso nos separar? E se foi justamente este acusado-acuado acaso o responsável por nos aproximar?

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Os tempos/lugares de IN ON IT nos possibilitam outro entroncamento argumentativo: em que medida o presente é regido pelo passado? Em que medida reforjo o tempo da memória no canteiro de obras do presente? Até onde vai a representação - ou até onde sou eu mesmo? Ator ou autor no mundo?

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Quando a resposta escapa a toda forma de abordagem racional, talvez apenas a ficção indique um caminho às preocupações mundanas, como quis Lucien Goldmann: a literatura (a arte, a imaginação) acessa a tomada máxima de consciência - não é com um tratado, mas com o devaneio de um cavaleiro andante que se funda o romance moderno.

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A questão aflige a História e aos historiadores da minha geração ao se debruçarem sobre o passado. Aflige a mim mesmo, a meus amigos e conhecidos. Como estar dentro desta coisa e discorrer a respeito dela, dotá-la de inteligibilidade? Como o controle da coisa onde o acaso? A imaginação, como o sonho ou a arte ou a escrita cuneiforme ou a matemática, seria mais um suporte para se acessar a realidade? Em momento algum se perde a linha do raciocínio; o público é conduzido e interage, o espetacular acontece, as coisas simplesmente acontecem..

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Imerso na segunda camada da ficção, o personagem que irá morrer (ora representado pelo autor da peça, ora representado por seu namorado), morre. Não da forma como haveria de morrer inicialmente, mas envolvido em uma batida de carro, em um terrível acidente de trânsito. Operará o acaso? Escurece, há palmas, alguns já se levantam.

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Ora, não acaba assim, quase reclama o autor, triunfante, ao suspirar, ao tornar a si: o público gosta de tudo amarradinho (talvez este seja Daniel Maclvor falando diretamente a seus espectadores). Enfins, o namorado do autor põe o casaco, vai sair para comprar (um cigarro? um jornal? papel-higiênico?) e, então, convergentes no tempo e nos lugares da narrativa, ficção e realidade se encontram ao dobrar a esquina.

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Este aí seria um bom jeito de terminar o post: dramático, sem grandes spoilers a quem não viu a peça, faria sentido para quem a assistiu e talvez até provocaria algum prazer estético, quase banal. Mas não termina assim, convencional, busca surpreender e surpreende, a obra de arte não deixa saber sobre o que exatamente se está falando, mas fala, e algumas coisas não terminam, apenas param. Competirá a seus personagens dolorosa tarefa: para retomarem seu curso, para enfim terminá-la.

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