sexta-feira, 14 de maio de 2010

Juízes e eleições: entre o poder pessoal e o Estado no Brasil do século XIX

RESUMO

A edição do Código de Processo Criminal, em 1832, esvaziou o Poder Central com as novas atribuições do juizado de paz e do sistema de jurados, previstos na Carta outorgada de 1824, em harmonia com o ideal liberal segundo o qual a soberania decorre do povo. Em 1834, foi aprovado um Ato Adicional à Constituição, reorganizando a distribuição do poder mediante um novo arranjo institucional, que criou as Assembléias Provinciais, o que foi visto por parte da historiografia como uma forma de centralização e, por outra parte, como um pacto federativo.

A reforma do Código de Processo e a recriação do Conselho de Estado, em 1841, centralizaram o Poder Judiciário, instituindo um novo modelo de soberania. As jovens elites liberais da Província de São Paulo, sentindo-se alijadas do poder decisório do Estado, reagiram às leis regressistas, conduzindo, assim, à Revolução Liberal de 1842. Esta pesquisa tem por objetivo buscar entender qual o programa político e o modelo de Estado do grupo ligado ao Partido Paulista.

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INTRODUÇÃO


Entroncamento privilegiado de vias, São Paulo[1] conheceu a intensificação de sua atividade mercante, voltada ao abastecimento, tanto com o advento da mineração como em 1763, com a transferência do vice-reinado da Bahia para o Rio de Janeiro.[2] No entanto, se “o núcleo mineiro adquiriu especial importância como ponto de partida para a integração do Centro-Sul”,[3] somente a partir de 1808 é que será possível se começar a pensar na idéia de construção de um Estado nacional, com o deslocamento da Corte portuguesa, a abertura dos portos[4] e um parcimonioso processo de enraizamento.[5]
Com a nova demanda, a produção paulista e, sobretudo, a do sul de Minas Gerais,[6] bem como a pecuária do extremo meridional, foram orientadas ao Rio de Janeiro: “as tropas carregadas dirigiam-se à Corte, através do Vale do Paraíba que, pouco a pouco, foi sendo povoado”,[7] tendo tido o governo, mediante a prática da doação de terras, importante papel na fixação dos tropeiros, comerciantes, empreiteiros e funcionários.
Trata-se, desta forma, de um núcleo econômico jovem e que, portanto, merece tratamento diferenciado por parte da historiografia, com relação àquele dispensado às economias mais tradicionais da América portuguesa:

“São Paulo corresponde mal, em 1808, à idéia que se tenderia a fazer de uma capital e sede de Governo (...) a grande lavoura começa a ocupar espaço crescente na vida econômica de uma região dedicada até pouco antes ao pastoreio, além das simples culturas de subsistência (...) ao tempo da Independência a economia de São Paulo ainda não assenta de modo predominante sobre a agricultura, como sucederá mais tarde (...). Pode-se dizer que em 1822 estava quase em seu começo a grande lavoura”[8].

Com ela, desapegados das tradições, criados fora do meio rural, Sérgio Buarque vislumbra o nascimento de “homens de espécie nova (...) animados de vigoroso espírito de independência e iniciativa”, que passam a “identificar as exigências dessa economia com as reivindicações do liberalismo”.[9] Contudo, esta primeira “e notável” geração dos liberais de São Paulo se apresentaria em profundo descompasso com a sociedade política de seu tempo, sobretudo depois de 1837, com a renúncia do Padre Diogo Feijó à regência, chegando ao ponto de se tornarem anacrônicos no contexto regressista em que se desenvolveu a revolução de 1842.[10]
Feitas estas considerações, é possível se problematizarem termos como liberal e regressista a partir da análise do Estado da particular perspectiva da costura do arranjo jurídico-institucional, o que exige que se delineie a situação vigente à época da outorga da Constituição Imperial de 1824, que reorganiza e, em determinado sentido, cria formalmente os pontos do bordado normativo nacional.[11]
D. João VI havia jurado a Constituição espanhola de Cádiz[12] até que a Constituinte portuguesa debatida nas Cortes encontrasse seu termo final e, neste momento, a idéia de emancipação ainda não está colocada: o decreto de outubro de 1821 determina a criação de Juntas Provisórias no Reino do Brasil, alçando as antigas Capitanias à condição provincial, mediante deposição dos governadores e extinção da burocracia duplicada no Rio de Janeiro, subordinando o governo das armas ao controle da metrópole.[13] No mesmo dia é publicada a lei que determina o retorno imediato de D. Pedro para Portugal.[14]
Endossadas pelos representantes de Pernambuco, recém egressos da repressão decorrente da Revolução de 1817, as determinações serão duramente questionadas pelos outros deputados. Em 17 de junho de 1822, a bancada paulista propõe um projeto de Ato Adicional ao texto, que estabelecia as “novas bases para a união da nação portuguesa”,[15] prevendo tanto a delegação da regência ao príncipe herdeiro como a instalação de uma Constituinte no Brasil, com poderes limitados, verdadeiro instrumento de barganha das autonomias provinciais, despida de qualquer forma de sentimento nacional, o que granjeia, de forma inédita, o apoio da maioria dos representantes do além-mar. Com o veto da proposta, as Juntas de São Paulo e de Minas Gerais enviam pedido ao príncipe para que permaneça no Rio de Janeiro, o que é tomado, pelas Cortes, como ato de desobediência.
A inviabilidade da conciliação conduz ao chamamento, por decreto, da Assembléia Constituinte em 03 de junho de 1822,[16] conforme sugestão do Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil,[17] antevendo a fragmentação do território. O envio de tropas por Portugal à Corte carioca sela a ruptura e, em 21 de outubro, D. Pedro envia carta a Portugal avisando que “toda a força é insuficiente contra a vontade de um povo”.[18] Contradizendo sua afirmação, em 12 de novembro de 1823, dissolve a Assembléia, e delega ao novo Conselho de Estado poderes para redigi-la.[19]
Outorgada em 25 de março de 1824, a carta, seja formal ou materialmente, prefere o Poder Executivo ao Legislativo, o que sublinha o entendimento sobre a natureza da soberania. Frei Caneca, ao considerar a Constituição como pacto social, impossibilita a própria análise dos artigos à espécie, uma vez que emanada de autoridade incompetente, passível, portanto, da respectiva exceção.[20] Sua análise é jurídica e reflete um posicionamento político. No mérito, a idéia persiste, sobretudo quanto ao moderador, “garrote da liberdade dos povos”,[21] construindo um modelo unitário de Estado ao mesmo tempo em que prevê a instituição de Códigos.[22]
Prevê a Carta a criação do Supremo Tribunal de Justiça, do Jurado e do Juiz de Paz eletivo, todos a serem regulados por leis próprias,[23] sem extinguir a estrutura do Poder Judiciário então vigente:[24] para Thomas Flory, se no momento da emancipação política formal esta continuidade não se afigurou como problema, a persistência do sistema legal nos anos seguintes agravou os sentimentos anti-lusitanos, gerando tanto ataques aos magistrados, acusados de corrupção e de arrogância corporativa adquirida em Coimbra, em seu período universitário, como oposição às normas portuguesas, de difícil aplicação.[25] O próprio Imperador admitia a demanda por reformas, mas as implicações políticas de uma mudança na lógica judiciária exigiam uma ação cautelosa.[26]
A escolha da primeira legislatura geral pela aprovação gradual de leis reformistas, uma vez que uma reforma dos códigos demandaria anos e havia urgência na melhora da administração da justiça, conduziu à aprovação da Lei de 15 de Outubro de 1827, que criou o Juiz de Paz, figura isolada na incompatível estrutura judicial da colônia. Entre os reformadores, Flory identifica os partidários do melhorismo, atentos aos abusos do sistema vigente, cada vez em menor número, e aqueles que tinham como meta o ataque ao poder central por meio dos conflitos jurisdicionais que o foro eletivo causaria, sobretudo em face do Juiz de fora, nomeado pelo Imperador:[27] a norma se afigurava como o influxo de duas distintas, senão opostas, concepções do poder soberano.
Sobreposto a três antigas instâncias judiciais,[28] o Juiz de Paz era a autoridade da freguesia, “emquanto não se estabelecerem os districtos”,[29] marco da ascensão dos liberais que gerou defesas e ataques apaixonados. A preocupação jurídica foi não apenas uma das principais chaves da construção do Estado nacional, como também instrumento singular de luta entre diferentes programas políticos.
Poucos meses antes da criação do magistrado eletivo, em 11 de agosto do mesmo ano foram aprovados “dous Cursos de sciencias juridicas, e sociaes, um na cidade de São Paulo, e outro na de Olinda”.[30] Segundo a lei, os Lentes fariam a escolha dos compêndios e doutrinas, mas só depois de “approvados pela Congregação”, servindo interinamente, “submettendo-se porém à aprovação da Assembléia Geral”. Se aprovados, seriam impressos e distribuídos pelo Governo.[31] No ano seguinte, a Lei de 18 de setembro de 1828 cria o Supremo Tribunal de Justiça[32] e, no mês seguinte, na contramão das reformas liberais, é editada a Lei de 1º de outubro, que transforma as Câmaras Municipais em entes meramente administrativos.[33] Às vésperas da abdicação, em 16 de dezembro de 1830, é aprovado o Código Criminal, revisando o draconiano Livro V das Ordenações, o código de sangue, segundo a imprensa liberal da época: a sua brandura, em comparação à norma revogada, compromete ainda mais a já erodida autoridade do Imperador, em época de forte agitação política.[34]
A abdicação, em 1831, cederia lugar à acomodação de interesses, e este momento é vislumbrado como possibilidade de reforma do antigo arranjo de 1824: “a responsabilidade pela conservação [do Império e da ordem] passava bruscamente para os que estavam empenhados na revolução”.[35] Se em 1829 foi protocolado, para debate, um código processual sem o sistema de jurados, o que encolerizou os deputados gerais, o projeto apresentado pelo liberal Manuel Alves Branco em 1831 foi aprovado rapidamente e por aclamação,[36] e publicado em 20 de novembro de 1832.
O Código do Processo Criminal de 1832 reescreve toda a organização judicial do Império. Estabelece a divisão judiciária de primeira instância das Províncias em Distritos de Paz (jurisdição territorial do Juiz de Paz), Termos (do Juiz Municipal e do Conselho de Jurados), e Comarcas (do Juiz de Direito).[37] A competência jurisdicional do Juiz de paz é sensivelmente dilatada e, entre outras coisas, cabe a esta autoridade a formação da culpa, ou seja, a totalidade da instrução penal.[38] A nomeação de escrivães distritais e inspetores de quarteirão passa a ser feita pela Câmara Municipal a partir de proposta do juiz eleito, estando os inspetores dispensados do serviço militar na primeira linha e das Guardas Nacionais, restando suprimidos os Delegados.[39]
O Juiz Municipal é, precipuamente, um juízo de execução que acumula a jurisdição policial e substitui o Juiz de Direito, em seu impedimento ou falta. É escolhido pelo Presidente do Conselho Provincial a partir de lista tríplice das Câmaras Municipais e é, obrigatoriamente, bacharel em Direito.[40] Substituto do Juiz de Fora do condado, com jurisdição extremamente diminuta, era utilizado pelos recém-formados, assim como o cargo de Promotor Público, como espécie de estágio para a magistratura profissional.[41] O Juiz de Direito também precisa ser bacharel, com, no mínimo, vinte e um anos e ao menos um ano de prática forense. Contudo, o Código de Processo reduz drasticamente os seus poderes, tornando-o uma autoridade praticamente decorativa.[42]
O Primeiro Conselho de Jurados (ou Grande Júri, ou Júri de Acusação), formado por vinte e três membros, decide, em escrutínio secreto e por maioria absoluta, se há suficiente esclarecimento sobre o crime (elementos de materialidade) e seu autor (elementos de autoria) para se proceder à acusação. Havendo, o Juiz de Direito sentenciará neste sentido. Em seguida, o acusador[43] oferecerá o libelo acusatório e será formado, com doze membros, o Segundo Conselho de Jurados (ou Pequeno Júri, ou Júri de Sentença), que decidirá, uma vez madura a causa, se há crime, se o acusado é o criminoso, o grau da culpa, se há reincidência e se cabe indenização.[44]
O “experimento liberal” revogou os Livros I e III das Ordenações. No entanto, “as críticas ao código de processo tiveram início já a partir de sua promulgação”.[45] Segundo Ivan Vellasco, as inovações se mostraram de difícil cumprimento, sendo os seus problemas mais graves as lacunas de autoridade e a descentralização da estrutura judiciária e policial.[46] No mesmo sentido, analisa Thomas Flory: “el código resultó imposible de manejar”.[47] Se a proposta inicial era tornar mais ágil, racionalizar e modernizar, a lei de 1832 inchou o sistema judicial a ponto de, em muitas localidades, faltarem pessoas para preencher os quadros.[48] Todos estes problemas, aliados às pressões locais, conduziram à crítica generalizada da impunidade provocada por uma codificação penal branda e uma processual ineficaz, bem como à ruína das bases intelectuais do movimento liberal.[49] Os membros do ministério viam como premente a necessidade de reformas para tornar administrável o Estado,[50] o que torna inteligível a edição da lei de 12 de outubro de 1832,[51] em sessão conjunta da Câmara e do Senado, vista, por Miriam Dolhnikoff, como a base para a futura formulação do Ato Adicional.[52]
O Ato de 1834[53] foi lido por Aureliano Cândido Tavares Bastos como a grande conquista liberal.[54] Thomas Flory o considera, na verdade, uma medida de centralização intermediária, uma vez que conferiu às Assembléias enorme influência sobre o poder local, privando as Câmaras da autoridade que lhes restava, uma forma de remediar o golpe que os liberais desferiram contra si com o código processual.[55] Em 1987, Ilmar Rohloff de Mattos, a partir de uma instigante interpretação, considerou o Ato a expressão do compromisso entre moderados, exaltados e restauradores, no sentido de distribuir os interesses das elites provinciais rumo à centralização total que, em 1842, consolidaria o poderoso gabinete saquarema, com o revés das revoluções liberais.[56]
Mais de quinze anos depois, o debate em torno do Ato Adicional seria renovado por Miriam Dolhnikoff. Segundo a leitura da historiadora, ao contrário da visão historiográfica tradicional, que considera a vitória da monarquia como a vitória do projeto de um Estado unitário centralizado, “o projeto federalista (...) não morreu em 1824, tampouco em 1840 (...) saiu vencedor, embora tenha que ter feito (...) algumas concessões”.[57] O arranjo federativo de 1834 submetia as localidades à administração regional das Províncias. Ao mesmo tempo em que supria o anseio autonomista, permitia a sua integração e participação no governo central mediante o espaço do debate institucionalizado da Câmara dos Deputados.[58]
O dispositivo da norma que determina a competência das Assembléias provinciais “sobre a creação e suppressão dos empregos municipaes e provinciaes”[59] foi muito debatido nos anos seguintes.[60] Sem apoio no legislativo central, os Ministérios liberais, como o de Diogo Feijó, apoiaram as Províncias a criar funcionários administrativos que limitassem as funções do juiz de paz, pois incontroláveis, na prática, pois desconectados da Administração central. Por estes motivos, Thomas Flory considerou a indefinição do dispositivo como proposital, em atenção às necessidades da regência.[61] Já para Miriam Dolhnikoff, as “leis de prefeitos” foram uma deturpação liberal para que se criasse mais um mecanismo de neutralização do poder municipal.[62]
Em atenção à determinação da Lei de 1834, no ano seguinte foi organizada a eleição para a Regência una e, vencedor das eleições, Diogo Feijó toma posse em 1836, vindo a renunciar em setembro de 1837,[63] deixando o cargo ao senador conservador Pedro de Araújo Lima que, no novo pleito, para 1838, também obtém êxito sobre Holanda Cavalcanti. As violentas revoltas que se sucederam à aprovação do Ato,[64] os diferentes sistemas processuais instituídos pelas Províncias, as crescentes críticas aos liberais e à Justiça culminaram, em 1837, marco do regresso conservador,[65] com “un gobierno que carecia de control de la judicatura, de la policía y del personal de los juzgados ”[66] O novo gabinete refletia a maioria regressista na Câmara (legislatura 1838/1841),[67] e é nela que tramitarão os projetos de interpretação do ato adicional e de reforma do código de processo.[68]
Os oito artigos da lei de interpretação serviram para delimitar e esclarecer as competências no âmbito das Províncias.[69] Para Flory, tratou-se de uma norma que buscava o apoio dos magistrados[70] e, em seguida, aponta que, às pressas, em 1841, os conservadores aprovaram a mais importante das reformas regressistas, reestruturando o sistema jurídico e possibilitando a sua continuidade no poder.[71]
A lei de 03 de dezembro neutraliza o juiz eletivo, limita o poder dos juízes de fato e centraliza o sistema judiciário e policial em torno da figura do bacharel em direito. O Imperador ou os Presidentes passam a nomear um chefe de polícia para cada Província entre os desembargadores ou juízes de direito, com as atribuições penais do Juiz de Paz.[72] Os juízes municipais têm sua competência jurisdicional ampliada,[73] bem como os Promotores Públicos[74] e os juízes de direito.[75] Fica extinto o Primeiro Conselho de Jurados (o Júri de acusação).[76] Flory apontou que a reforma, de feições elitistas, buscou o controle do governo central sobre a magistratura e a polícia, descartando instituições democráticas a ponto de conceder ao juiz de direito a prerrogativa de apelar das decisões dos juízes de fato que considerasse contrárias às evidências.[77] No mesmo sentido centralizador pode ser considerada a criação do novo Conselho de Estado.[78]
Com a maioridade, em julho de 1840, em São Paulo, Rafael Tobias de Aguiar é nomeado Presidente provincial e os irmãos Martim Francisco e Antonio Carlos Andrada são alçados a ministros. O jovem bacharel Gabriel Rodrigues dos Santos é secretário provincial. A ausência dos principais quadros liberais na Assembléia paulista conduziu à maioria conservadora, situação que se inverteria em 1842, com o gabinete palaciano de Araújo Viana e a demanda criada pelos novos cargos, criados com a reforma do Código.[79] A legislatura paulista, com absoluta maioria liberal, aprova, na 9ª Sessão ordinária de 1842, em 18 de janeiro, uma representação a ser levada à Corte, que chamam “documento historico de summa importancia”:[80]

“A Assembléa Provincial de S. Paulo, em cumprimento de seus deveres (...) vem ante o Throno de V.M.I. pedir a sustação das duas denominadas leis das reformas do Codigo, e criação de um Conselho de Estado, até o tempo em que a nova Assembléa possa rever e revogar (...) attenta a uma inconstitucionalidade, e de envolta reclamar de V.M.I. mais bem avisado a demissão de um Ministério, traidor, cuja continuação põem em risco a paz do Império, a ordem e tranqüilidade da Província, e até a segurança do Throno (...) No systema Constitucional a lei é a expressão da vontade nacional, declarada por seus legítimos representantes, e sellada com o cunho do Imperante; mas a vontade nacional não é, nem pode ser senão o resultado da opinião reinante (...) [que] reprova as prescripções destes façanhudos actos, até por serem decretados por falsos intérpretes, rejeitados a maior parte pelo povo soberano. Peccam na forma pelo modo pelo qual foram introduzidos”[81].

A representação foi oferecida ao imperador por comissão encabeçada por Nicolau Pereira Vergueiro em 04 de fevereiro de 1842, e devolvida pelo Ministro do Império, Araújo Viana, no dia seguinte, com a respectiva resposta, que em dez dias seria conhecida pela Assembléia, na qual se lia que o Imperador “tem resolvido não receber a deputação portadora de uma Representação offensiva da Constituição”, e também porque feita em “linguagem descomedida” e pela “maneira descomposta, e criminosa, com que ahi são tratados os ditos Poderes Supremos” .[82] Depois de maio, com a dissolução da Câmara geral, os liberais paulistas viram confirmado, como único caminho, a Revolução.



OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA


Para Miriam Dolhnikoff, o arranjo institucional concebido em 1834 “permaneceu em vigor mesmo depois da revisão conservadora da década de 1840”,[83] sendo que as concessões foram limitadas ao “aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal”.[84] Neste sentido, não poderiam as reformas ser lidas como uma centralização absolutista, uma vez que mantiveram a Assembléia geral e as Assembléias provinciais, o que seria importante para as elites regionais, uma vez que lhes permitiriam, ao mesmo tempo, autonomia e participação: a clara definição das competências permitiria a existência do local institucionalizado do debate, em igualdade jurídica formal de condições.[85]
Jorge Grespan aponta, no modo de se pensar a relação entre os costumes (do povo) e a razão (de Estado), duas tendências principais: uma vertente, ao precisar se decidir entre a razão universalizante e os costumes, preferiria a primeira, rumo ao despotismo esclarecido, onde persiste o direito individual de crítica, desde que circunscrita ao âmbito da obediência do súdito.[86] A segunda vertente, partindo do mesmo ponto, preferiria o costume e, portanto, a deposição do príncipe, ao considerar o despotismo injustificável,[87] não mais balizando a razão como ruptura, mas como continuidade.[88]
A idéia de uma monarquia federativa é singular, pois, ao mesmo tempo em que permite o costume, a opinião, a consciência e o interesse privados, ainda que circunscritos ao âmbito do debate legislativo, permite também a razão, que emana do Rei. Cabe questionar, neste raciocínio, porém, os limites da repercussão política daquelas elites, cujos anseios estariam representados na Assembléia central e nas provinciais, nos rumos do Estado. Reinhart Koselleck lega instrumentos que talvez possibilitem uma reflexão proveitosa sobre os caminhos tomados, ou as apropriações sofridas, pelo absolutismo clássico:

“No direito constitucional de Hobbes, as convicções privadas não encontram nenhuma aplicação às leis; as leis não são aplicáveis ao soberano. O interesse público de Estado, sobre o qual somente o soberano tem o direito de decidir, não compete mais à consciência. A consciência, da qual o Estado se separa e se aliena, transforma-se em moral privada (...). O monarca está acima do direito e é a sua fonte; ele decide o que é justo ou injusto; é, ao mesmo tempo, legislador e juiz. O interesse desse direito, como direito público, não está mais ligado a interesses sociais (...) para além de (...) partidos, ele marca um domínio formal de decisões políticas (...). A decisão política do príncipe tem força de lei (...). Às teorias morais tradicionais, Hobbes opõe uma moral cujo tema é a razão política (...). A qualificação moral do soberano reside em suas funções políticas, isto é, em instaurar e manter a ordem (...). A legalidade destas leis não residia na qualificação de seu conteúdo, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem a expressão da vontade do poder soberano”[89].

A norma é a vontade da fonte soberana: em um Estado imperial absolutista, portanto, bem interpretá-la é depurar a vontade do Imperador. O embate do século seguinte àquele tratado por Koselleck será sobre o lugar da irradiação da soberania: se advirá ela da natureza parlamentaria do Poder Legislativo, ou se persistirá no Poder Executivo, o que delimita as questões concernentes tanto às fontes do direito como à forma dos controles de jurisdicidade.
Esta é, em termos gerais, a chave que move a “história do grupo dos juristas como participante da luta política”,[90] pensada por António Manuel Hespanha. Uma luta travada pelo poder de dizer o direito, pela recuperação da hegemonia do domínio do campo da sua produção – um poder “cardinal em sociedades em que vigora o primado do direito”.[91]
O paradigma legalista, no recorte da pesquisa em seu estado jusracionalista, conduziu a uma partilha indesejada da atribuição de dizer o direito, ainda que os juristas jamais tenham deixado de ser participantes privilegiados do espaço público.[92] Em outras palavras, ao se constitucionalizar o príncipe, o primeiro a sofrer o golpe é seu maior representante, o Poder Judiciário, longa manus do rei moderno. Seus membros, envoltos em forte sentimento corporativo, pautados pelo método reputado científico da processualística, ao se recordarem do tempo do monopólio da dicção do direito, desdenham a especulação dos filósofos e a vontade arbitrária dos parlamentares.[93]


“(...) os defensores da soberania (agora, da soberania popular) tendiam a ver inimigos jurados nos juristas (...) e na sua primazia política – a tal ‘desembargocracia’, resquício da velha ordem, ainda recusada pelo escritor-parlamentar Almeida Garret (...). Politicamente, qualquer alusão aos juristas de conformarem o direito, nomeadamente no plano do direito político, não poderia deixar de ser entendida como tentativas de deslegitimar a soberania popular”.[94]


A defesa da função criadora dos juristas ganha novo impulso com a dissociação entre lei e direito: aquela nada mais seria do que o direito reduzido às normas positivadas. Este, por sua vez, é a razão universal: assim, o jurista é antes guardião natural do verdadeiro direito do que da lei, o que lhe garante uma reserva natural oponível ao legislador e, assim, reassume parte considerável de seu antigo poder.[95] Ao mesmo tempo, o princípio anti-majoritário do rei passa a se apoiar em dupla articulação: a nação não se esgota no parlamento e a técnica jurídica não é acessível a todos os representantes do poder político.
Acima da Constituição escrita, haveria outra, uma vez que o poder do povo de criar é limitado pela boa razão, o verdadeiro pilar constituinte. A razão é área de privilégio dos juristas, conjunto dos cidadãos ilustrados, inseridos e iniciados na tradição do saber cultivado e metódico e, pois, conhecedores privilegiados da ordem consuetudinária, a natureza da nação, e preocupados com os bens e direitos universais a serem tutelados, [96] insuscetíveis às contingências legislativas. Estas são as bases do seu poder supra-constitucional.[97]
“(...) a ponta de lança do confronto entre juristas e políticos eram os académicos doutrinários, por regra professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Separados da Lisboa política (...) eles podiam opor ao duvidoso cosmopolitismo da capital (...) o cosmopolitismo de suas leituras, das suas bibliotecas, da sua tradição académica”.[98]


A concepção jurisdicionalista do poder, própria do direito comum, identifica iustitia a officium regni, o que possibilita a existência da graça, o poder do Rei de atribuir o indevido como forma de aperfeiçoar a justiça,[99] sem que, para isso, precise se submeter à contenda pública: os interesses imediatos do reino são decididos pelo soberano como o pai decide os rumos da casa, de forma privada, sem que precise expor suas razões à aprovação da opinião geral (Poder Legislativo). O predomínio da graça é um núcleo a partir do qual se desenvolveria importante parte das pretensões anti-majoritárias do Rei e da doutrina.
O importante papel dos juristas na organização do espaço social moderno não decorre apenas da sua eventual origem abastada, ou por sua simples proximidade com o poder, mas, sobretudo, em decorrência do papel central do direito e da justiça como instrumentos eficientes de disciplina social: “se se partir desta progressiva centralidade (...) se entenderá a centralidade homóloga das lutas sociais pelo controle da competência para dizer o direito”.[100]
Afirmar a primazia do direito e do Poder Judiciário não é definir a sociedade com a qual se relacionava com um determinado caráter,[101] mas localizar como foram construídas concepções distintas de Estado e de que maneira formas específicas de se organizar a sociedade atenderiam melhor a um ou outro grupo. Afirmar liberais determinados homens e conservadores outros deve ser colocado, antes, como um problema. Conforme denota Emília Viotti:


“O liberalismo não foi um simples capricho das elites brasileiras, e os slogans liberais não foram usados meramente como símbolos do status ‘civilizado’ dos que os invocavam, se bem que para alguns tenham sido apenas isso. Para a maioria, no entanto, as idéias liberais eram armas ideológicas com que pretendiam alcançar metas políticas e econômicas específicas”.[102]


Ilmar Matos divide a dimensão privada (o livre que existe por oposição ao cativo) da pública que, por sua vez, engloba a sociedade política (dos cidadãos ativos que detêm a responsabilidade exclusiva) e a sociedade civil (dos súditos não-ativos). A sociedade política é hierarquizada, com o Imperador acima de todos, eleitores sobre votantes e, finalmente, o Poder Executivo sobre o Legislativo, sendo o grupo saquarema o núcleo regressista desta concepção.[103] Aos luzias, quem deve dizer a lei é a Casa, pelo parlamento, mecanismo que existe para fazer os freios e contrapesos ao Executivo, despótico, que visa estreitar o círculo de garantias da ordem privada.[104] A concepção é rejeitada pelos regressistas, que pugnam pela hierarquização dos poderes, com o Rei sobre todos, pois detentor do monopólio da responsabilidade.[105] Para Thomas Flory, a idéia do monarca-magistrado é portuguesa e é possível supor que tenha sido também enraizada a partir de 1808:


“El rey de Portugal y los algarves acariciaban como su atributo más alto de soberania el papel de supremos dispensadores de la ley y árbitros judiciales. Por extensión, los magistrados profesionales del imperio colonial eran sustitutos del monarca y la fuerza de sus decisiones provenia tanto de la autoridad personal derivada de ello como de codificaciones legales o procesos judiciales. La mezcla e incluso la confusión entre los sistemas gubernamentales hizo problemático el concepto de uma burocracia abstracta e impersonal en el imperio portugués, y los lazos personales de mutualismo entre rey y el magistrado contribuyeron aún más a hacer del personal legal (los propios jueces individuales) el centro dinâmico del sistema legal portugués”.[106]


O sistema recursal estabelecido pela Constituição de 1824, em articulação com a Lei do Supremo Tribunal de Justiça, de 1828, e com o Código reformado de 1840, poderia supor, em um primeiro momento, uma federalização da orientação jurisprudencial ao estabelecerem que o recurso de revista submetesse o feito à verificação de nulidade manifesta ou injustiça notória que, se verificadas, implicariam na nulidade ou erro do julgamento. O Supremo não reformava a decisão nula ou errada; apenas a remetia de volta à Relação do juízo de origem.[107]
Conforme recente artigo de José Reinaldo Lopes, em 1871, José Nabuco entenderia este sistema como uma anomalia em que tribunais de segunda instância podiam decidir ao contrário dos Superiores, conduzindo à incoerência da jurisprudência, à incerteza dos direitos e à fraqueza da lei, aplicada de modos diversos.[108] Não obstante, José Reinaldo levanta a sólida hipótese de que, na verdade, se havia uma orientação pretoriana durante o Império, ela foi formulada nas Seções do Conselho de Estado recriado pela Lei de 23 de novembro de 1841 e regulamentado pelo Decreto nº 124, de 05 de fevereiro de 1842, centralizando a própria formação da cultura jurídica[109] e, não por coincidência, um dos “façanhudos actos”[110] denunciados pela Representação da Assembléia paulista.
A primeira hipótese que se afigura, a partir dos referenciais teóricos introduzidos, é a de que, em 1834, com o Ato Adicional (e mesmo depois da sua Interpretação, em 1840), seria perfeitamente possível se falar em um arranjo do tipo federativo, uma vez que o aparato judicial sequer se encontrava conectado à cadeia do mando. Contudo, depois de 1841, ainda que as reformas regressistas tenham mantido as Assembléias provinciais, ou seja, um Poder Legislativo com feição federativa, centralizaram os órgãos-chave de definição dos rumos do Estado imperial, condicionando a participação nas instâncias decisórias à figura do bacharel em direito e eliminando toda manifestação efetivamente expressiva do poder local. O debate teórico-político em torno das diferentes concepções do poder soberano estaria em compasso com aquele travado, no mesmo momento, na Península Ibérica, conforme se infere dos estudos de Manuel Hespanha.
Erik Hörner, em recente dissertação de mestrado,[111] analisou os debates, travados no âmbito da Assembléia paulista, sobretudo a respeito do projeto do grupo ligado a Rafael Tobias de Aguiar sobre a criação de um Banco Provincial, que nunca seria colocado em funcionamento, devido às articulações do grupo conservador.[112] Como os jornais do período eram veículos do debate político, uma “continuação da tribuna”, o pesquisador passa à análise d’“A Phenix”, folha conservadora. Será neste jornal especificamente que encontrará, em edições de 1839, menções ao Partido Paulista como aquele da “fortuna collosá”, que, a pretexto de progressismo, cansava as forças do “nascente Estado em uma marcha accelerada”.[113] A análise que deriva é prolífica em considerações:


“(...) o partido de Rafael Tobias de Aguiar, Vergueiro, Paula Souza e outros, seria propagador da anarquia, não-constitucional e afoito. Veja que é possível trocar estas características por adjetivos pessoais, como rebelde, infenso às regras e impaciente. Não seria o suficiente para caracterizar um jovem? (...) surgidos efetivamente na cena política da Corte com as conturbações de 1831, seu poder ainda não estaria consolidado ou não possuía uma representatividade proporcional a sua fortuna”.[114]


Uma elite nova, com enorme poder econômico, mas com formação provinciana. Neste sentido apontam as fontes estudadas por Hörner: em carta publicada neste jornal, Rafael Tobias de Aguiar “é descrito como burro, limitado intelectualmente, mas rico e poderoso”. Mesmo Gabriel Rodrigues dos Santos, bacharel pelo Curso Jurídico de São Paulo, era visto como “estudante preguiçoso e ignorante”.[115] Conforme sintetiza José Murilo, “uma carreira típica para o político cuja família não possuía influência bastante para levá-lo diretamente à Câmara começava pela magistratura”.[116] Hörner se indaga se não haveria, entre os principais quadros liberais, menos formados em direito do que entre os conservadores e, portanto, menos acesso político em um quadro de privilégio aos bacharéis:


“(...) apesar de Vergueiro ter estudado em Coimbra, o mesmo não aconteceu com os demais (...) Sendo a grande maioria destes empregos preenchida por bacharéis, é compreensível que indivíduos vindos de todas as províncias do Império para estudar na academia de São Paulo fixassem residência em São Paulo depois de formados e buscassem inserção na cena local (...) os debates da época levam a crer que os bacharéis ‘não-paulistas’ acabavam ingressando com mais freqüência no Partido da Ordem. Na verdade, deve-se investigar se no Partido Paulista havia poucos bacharéis de outras províncias, ou, simplesmente, havia poucos bacharéis. É provável que devido a uma riqueza recente e a uma formação provinciana, os bacharéis formassem um contingente relativamente pequeno entre os partidários de Rafael Tobias de Aguiar, ao menos entre os políticos mais velhos”.[117]


Trata-se de uma questão em aberto, a ser pesquisada e de enorme importância para o estudo da construção da nação brasileira, uma vez que, se comprovada a escassez de bacharéis entre os liberais, é possível se erguer a hipótese de que eles teriam sido enormemente alijados do novo arranjo institucional pelas reformas do início da década de 1840: não pela Lei de Interpretação do Ato Adicional, mas, sobretudo, a Reforma do Código de Processo e a Lei de criação do Conselho de Estado. Contra este quadro específico, seguido da dissolução da Assembléia, é que teriam se rebelado em 1842, pois as implicações do distanciamento do quadro jurídico-burocrático, sobretudo com a profunda extirpação dos poderes e atribuições do juizado de paz local, seriam incalculáveis: estaria perdido, a um só tempo, o controle sobre o tráfico de cativos[118] e sobre o aparelho eleitoral,[119] não obstante o fortalecimento quase imediato de seus opositores.[120]
Supõe-se, ainda, que os liberais pugnassem talvez pela institucionalização das leis de prefeitos, tornando este agente o contrapeso leigo do Juiz de Paz no plano local, indicado pelo Centro e, provavelmente, ansiassem por uma modificação substancial dos institutos do juiz eletivo e do Júri, uma vez que se viram alçados ao Poder central, mas não privá-los de suas atribuições mais fundamentais, como os conservadores fizeram em 1841, com a reforma do código de processo. Com a desvalorização monetária, houve um aumento sensível no número de eleitores[121] e é possível, ainda, que os membros do Partido Paulista, vislumbrando o peso crescente do sistema eleitoral, concebessem um projeto que albergasse as representações populares, ou seja, um modelo de soberania diverso daquele que prevaleceu.
Outras questões presentes nos Anais da Assembléia e em outros documentos merecem ser colocadas nesta chave interpretativa, que prefere olhar pela janela do aparato judiciário para compreender a formação do Estado: a polêmica em torno do cargo do Juiz Cível da Capital, ocupado por Joaquim José Pacheco, que encontrou a cólera dos liberais,[122] a perda imediata de poder por parte daqueles que ocupavam cargos de juiz de paz,[123] o caso do Juiz de Direito da 1ª Comarca que supostamente proibiu que o Legislativo representasse ao Imperador contra as “leis oppressoras”,[124] o discurso de fechamento da Assembléia proferido por Martim Francisco Ribeiro de Andrada, as cartas de José Antônio Saraiva, graduando em direito em São Paulo, que sugerem que “os estudantes estariam ao lado das forças do governo central”,[125] as inúmeras representações de juízes de paz recebidas pela Assembléia protestando contra a aplicação das leis de reforma, entre outras.[126]
Os objetivos principais desta pesquisa, a partir das justificativas apresentadas para a sua elaboração, passarão por identificar, entender melhor e, ao mesmo tempo, articular fatos históricos a teorias, indagando sobre a existência de um projeto do Partido Paulista com ambições maiores que os limites provinciais, o que, necessariamente, deverá passar também por uma resposta à indagação proposta por Erik Hörner sobre a relação entre os bacharéis em direito e o grupo ligado a Rafael Tobias de Aguiar e Diogo Feijó, concentrando-se nas discussões travadas no período que abarcou a Revolução de 1842.



METODOLOGIA


Manuel Hespanha, ao buscar uma forma de se escrever uma história constitucional sob o recorte do liberalismo monárquico português, denota duas preocupações dominantes do contexto teórico no estudo dos mecanismos do poder:


“Por um lado, a de não reduzir os fenômenos político-institucionais a um reflexo das tensões sócio-econômicas; por outro, a de adoptar um conceito alargado de poder que inclua no sistema político fenômenos que não pertencem ao universo jurídico-estatal”.[127]


A primeira necessidade é a de se superar as concepções mecanicistas de que o poder possa ser satisfatoriamente explicado como mero reflexo ou instrumento de tensões, sociais ou econômicas, preferindo, não obstante, realçar as condições materiais da sua produção, que incluem o imaginário jurídico, o ato comunicativo político do texto escrito, em seus diferentes âmbitos (discursivo, vocabular, referencial), as questões ligadas à ação e aos objetivos do ato de governar, bem como aos seus aspectos logísticos, tais como os meios financeiros, humanos e de comunicação.
Em seguida, parte-se do pressuposto de um conceito amplo do poder, conduzindo ao entendimento de um sistema político que considere outras tecnologias disciplinares, “(...) idéias-força (...), mecanismos institucionais (...) ‘morais’ (...) imagens da sociedade e do homem”.[128] Hespanha compreende estas premissas como níveis de problematização e, assim, adota um conceito específico de sistema político-institucional que “realce a sua autonomia”, que compreenda e condicione formas ou instrumentos coativos e também não-coativos, e que “contemple, ao lado do poder ‘oficial’ (o Estado, a lei), os poderes ‘informais’, periféricos”.[129] Em outros termos, busca abandonar a historiografia política preocupada apenas com idéias, ou apenas com a política, como matérias inertes que acabariam absorvidas pela história das idéias políticas, passando ao largo seja do nível jurídico, seja do nível institucional.
Sua pretensão tampouco remete a uma história dogmática, restrita ao âmbito da norma, o que traria armadilhas conceituais diversas, recortando-a do campo das práticas sociais. Deve-se ter em mente, ao analisar a lei, que se tem diante de si um discurso, devendo o historiador tomá-lo em sua totalidade,[130] pois produzido em um momento jurídico específico da história política. Se o direito não é exatamente “política”, tem, invariavelmente, uma conseqüência política.
A atenção da presente pesquisa tentará conciliar estas preocupações tanto na leitura dos documentos e textos como no momento da sua reelaboração, que se solidifica no ato da escrita expositiva que dota de inteligibilidade a seleção eleita. Isto porque é necessário admitir que “alguns recursos de método da nova história” sejam também “os da nova história do direito”.[131] Contudo, acrescentando-se a eles outros mais específicos; para José Reinaldo, o direito pode ser visto como ordenamento (“conjunto de regras e leis”), cultura (“espaço onde se produz um pensamento, um discurso e um saber”) e conjunto de instituições (“práticas sociais reiteradas, as organizações que produzem e aplicam o próprio direito”), podendo então “a história do direito (...) cruzar todos os recursos da nova história com estes três elementos do universo jurídico”. E “(...) abre-se então (...) um universo de questões”, que se pretende explorar, seja mediante o uso da fonte, seja por meio das leituras que dela deram conta.[132]






[1] ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Editora Hucitec, 2006, pp. 21-25: “A vila de São Paulo foi fundada em 1554 e tornou-se a sede da capitania de São Vicente em 1681. Em 1711, a capitania passou a se chamar São Paulo, com sede na cidade de São Paulo (...) A vila, criada entre o litoral e a entrada do sertão, passou a tirar partido dessa posição privilegiada a partir da chamada fase bandeirística (século XVII). A cidade de São Paulo ficava no entroncamento de seis caminhos terrestres”.
[2] Maria Luiza Marcílio demonstra que, apesar de amplo repertório documental apontar em direção a uma suposta “decadência econômica” da Capitania ao longo do século XVIII, iniciada a partir da exclusão dos paulistas dos principais veios auríferos depois da Guerra dos Emboabas, as taxas de crescimento demográfico sugerem um aquecimento do mercado local, voltado ao abastecimento da região das minas [MARCILIO, Maria Luiza A cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850). São Paulo: Editora Pioneira, EDUSP, 1974]. Maria Lucília Viveiros Araújo, partindo deste pressuposto, denota que “com a economia gradativamente mais monetarizada, tenham-se criado as condições para a agricultura de produtos tropicais para exportação no final do XVIII” (ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Op. Cit., pp. 24-25). No mesmo sentido, José Jobson de Andrade Arruda afasta, a partir de uma análise precipuamente econômica, a idéia de “integração nacional” no fim do setecentos: “o Brasil apresenta já uma certa integração interior. O que não pode ser referido como um mercado interno brasileiro, mas que é o primeiro passo para sê-lo. É, entretanto, um momento prévio e fundamental da interligação das partes que permitam a integração do todo” (ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980, pp. 120-122).
[3] DOLHNIKOFF, Miriam. Caminhos da conciliação: o poder provincial paulista (1835-1850). Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1993, p. 03.
[4] Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808, que “abre os portos do Brazil ao commercio directo estrangeiro com a excepção dos gêneros estancados”, como o pau-brasil.
[5] DIAS, Maria Odila da Silva Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Editora Alameda, 2005. Desenvolvendo o paradigma transacional de Sérgio Buarque de Holanda, Maria Odila chama atenção, em seu famoso ensaio, ao “processo interno de ajustamento (...) que é o enraizamento de interesses portugueses e sobretudo o processo de interiorização da metrópole no Centro-Sul da Colônia”.
[6] Conforme estudo de Alcir Lenharo (LENHARO, Alcir. As tropas da moderação – o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. 2a ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, 1993).
[7] DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 04.
[8] HOLANDA, Sérgio Buarque de. (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico, Vol. 04 “Dispersão e Unidade”, São Paulo: DIFEL, 1985, pp. 483-491 e 512. Sérgio Buarque, seguindo testemunho de John Mawe, viajante inglês, estima a população da capitania em duzentos mil habitantes, com trinta e três vilas além de Santos e da própria capital. Sua advertência é clara: “(...) seria ilusório cuidar que a grande lavoura representa nessa fase o que há de ser em dias mais tardios: o elemento dinamizador por excelência da economia local”. Localizados serra acima, os caminhos para os portos são lentos, penosos e sujeitos a transtornos, mal permitindo “à Capitania competir vantajosamente nesse ponto com outras áreas produtoras do centro e norte do Brasil”, sendo significativo que, apesar de a primeira remessa de café remontar a 1792, egressa do porto de Santos rumo a Lisboa, apenas em meados do século seguinte a exportação do produto viesse a se consolidar, espraiando suas lavouras pela futura capital, Jundiaí, Itu e no Vale do Paraíba (Idem, pp. 479-480). “O processo desenvolvera-se a partir do chamado norte, ou seja, do Vale do Paraíba, extensão natural da área cafeeira fluminense (...) Pouco tinha a ver, pois, com a evolução da lavoura comercial na Província de São Paulo, que se efetuara de preferência na direção do oeste (...) que tem seu fulcro em Itu primeiramente, depois em Campinas” (Idem, p. 525).
[9] Idem, p. 519. “Não é talvez por acaso que Itu, pioneira da lavoura comercial, também se apresenta desde cedo como pioneira do liberalismo e da emancipação nacional (...) Menos dependentes do influxo de burocratas e militares reinóis”, estes homens percebem a incompatibilidade do ímpeto expansionista da lavoura com o velho regime. Apesar de um pouco mecânica, a leitura é tomada como prolífico ponto de partida. O eco que parte de Itu, fazendo eclodir o germe liberal pela Província de São Paulo, provocará atritos com representantes de outras regiões, e, junto a Campinas, esperava-se pela abertura de caminhos para Santos para desbancar “o norte” na produção cafeeira. Não há como se passar ao largo do fato de que, ao tratar especificamente da Revolução liberal de 1842, o historiador abandonará a zona adjetiva da coesão, com termos como “eco da consciência liberal”, “maré liberal”, “fisionomia política apreciavelmente unitária” em detrimento da desordem, preferindo termos como “protesto desesperado”, “sem perspectivas de triunfo”, ou “quebra dos remos”.
[10] Idem, p. 528. Para se compreender e, eventualmente, indagar a complexidade deste encadeamento lógico, proposto por Sérgio Buarque, é necessário pensar a articulação destes eventos no plano da política que se pretendia “nacional”. Propomos, como forma de abordagem, a perspectiva político-institucional.
[11] O aparelho judiciário colonial foi descrito em detalhes por Arno Wehling [WEHLING, Arno J. e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil colonial (o Tribunal da Relação no Rio de Janeiro – 1751/1808). São Paulo: Editora Renovar, 2004] por Stuart Schwartz (SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979).
[12] BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Idem, Vol. VIII, pp. 29-70.
[13] “Decreto de 1º de Outubro de 1821. Determina provisoriamente a fôrma de Administração Política e Militar das Províncias do Brazil. (...) Art. 1º. Em todas as Províncias do Reino do Brazil, em que até o presente haviam Governos Independentes, se crearão Juntas Provisórias de Governo, as quaes serão compostas de sete Membros naquellas Províncias, que até agora eram governadas por Capitães Generais (...) Art. 6º. Fica competindo às Juntas Provisórias de Governo das Províncias do Brazil toda a autoridade, e jurisdição na parte civil, econômico administrativa, e de polícia, em conformidade das Leis existentes, as quaes serão religiosamente observadas, e de nenhum modo poderão ser revogadas, alteradas, suspensas, ou dispensadas pelas Juntas de Governo. Art. 7º. Todos os magistrados e Autoridades Civis ficam subordinados às Juntas de Governo, nas matérias indicadas no artigo antecedente, excepto no que for relativo ao poder contencioso, e judicial, em cujo exercício serão somente responsáveis ao Governo do Reino e às Côrtes (...) Art. 14. Os governadores e commandantes das armas de cada uma das Províncias serão sujeitos ao Governo do Reino, responsáveis a elle, e às Cortes, e independentes das Juntas Provisórias” (COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850, Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1889. Disponível em , último acesso em 12 de abril de 2008.).
[14] “Lei de 1º de Outubro de 1821. Determina a viagem do Príncipe Real por algumas Cortes da Europa (...) Art. 1º. Que o Príncipe Real regresse quanto antes para Portugal” (Ibidem.).
[15] BERBEL, Márcia Regina. “A retórica da recolonização”. In: JANCSÓ, István e NOVAIS, Fernando A. (orgs.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Fapesp/Hucitec, 2005, pp. 792-808. Márcia Berbel desmente, mediante consistente análise dos Diários das Cortes Constituintes, que a independência tenha sido fruto do suposto “rumo colonizador” que os debates teriam tomado, conforme afirmou considerável parte da historiografia, da qual destacamos José Honório Rodrigues. Longe de ser a preocupação central, tratou-se de um recurso retórico tardio, sobretudo em oposição ao projeto “integracionista” português, que pugnava pelo fortalecimento do poder central. Na verdade, as diferentes elites regionais trazem seus próprios projetos e, obrigadas a escolher um regime, optam pela monarquia constitucional, em torno de uma espécie de concepção federalista de Estado. O anseio da maioria das regiões, portanto, era por autonomia, e não por romper em bloco com Lisboa, ou muito menos, por centralização no Rio de Janeiro.
[16] Ainda neste momento, seria possível a conciliação, conforme argumenta Lúcia Bastos Neves. NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira. Corcundas e constitucionais – a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Editora Revan/Faperj, 2003.
[17] O Primeiro Conselho de Estado foi criado pelo decreto de 16 de fevereiro de 1822. José Bonifácio de Andrada e Silva responderia, em 27 de maio deste ano, aos questionamentos da Junta Provisória de Pernambuco, argumentando que o Conselho não existia para “fazer leis, porque estas são da competência exclusiva da assembléia dos representantes da nação, mas para julgar das que se fizessem nas cortes de Lisboa, onde, por desgraça, sobejas vezes se entende que sem distinção se pode servir no Brasil a legislação acomodada ao terreno de Portugal”. (BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. Volume I. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 559).
[18] Idem, p. 693. Se no Brasil D. Pedro é visto como liberal, as Cortes consideram seus atos absolutistas e contrários ao desejo da maioria. Instalada em 03 de maio de 1823, em setembro a Assembléia receberia o projeto do deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva.
[19] A nova redação, apesar de ter se aproveitado em grande parte do projeto de Antônio Carlos, permitia ampla margem interpretativa. O texto foi remetido às Câmaras municipais, como estratégia de legitimação, e somente questionado pelas de Itu, Recife e Olinda. (“Constituição Política do Império do Brazil”, disponível no “site”: , último acesso em 03/03/2008).
[20] BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Op. Cit., pp. 776-784. O frei ressalta que “(...) só a ação de escolher por si a matéria do pacto social, como faz S.M., é um ato de soberania, que ele não tem. Isto é uma conseqüência imediata da soberania da nação”. Considera tal atitude um “mal português”, herdado pelo monarca, ao preferir ordenamentos ao invés de pactos. Em seguida: “(...) o título de Imperador, com que o Brasil extemporaneamente o condecorou, não foi mais do que uma declaração antecipada (...), um certo poder provisório (...) indispensável para (...) a abertura da Assembléia soberana, o qual poder provisório cessou com a abertura da Assembléia”. Quem delega poderes ao rei é o povo, e não o contrário, pois “soberania (...) é aquele poder sobre o qual não há outro, reside na nação essencialmente; e deste princípio nasce como primária conseqüência, que a mesma nação é quem se constitui (...); portanto, como S.M.I. não é a nação, não tem soberania (...) não vem este projeto de fonte legítima e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência”.
[21] Ibidem. Frei Caneca faz críticas pontuais ao projeto. São, esquematicamente, estes os dispositivos atacados: art. 1º cc. art. 102, VIII (a questão do território); art. 2º cc. art. 83 (prerrogativa imperial de divisão das Províncias); arts. 98-101 (poder moderador); arts. 35-41 (desigualdade entre as duas casas legislativas); art. 102, XI (possibilidade de criação de uma nobreza); arts. 30, 32 e 53-59 (desequilíbrio de poderes); art. 65 (sanção, veto e recusa de consentimento); art. 148 (forças armadas nas mãos do Imperador); arts. 83-89 (esvaziamento dos Conselhos Provinciais).
[22] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. São Paulo: Editora Max Limonad, 2002, pp. 312-314. “Fazer um país de alto a baixo era a tarefa dos legisladores brasileiros após 1822, e seguindo o modelo da codificação (...) no Brasil não houve um debate nacional sobre a necessidade ou não dos códigos (...). O Estado nacional do Brasil nascia diretamente com o propósito reformador e (...) nascia dentro da tradição unitária do direito português ”.
[23] A Constituição de 1824 (arts. 151 a 164) afirma que o Poder Judiciário é Independente. Os Juízes aplicam a lei e os jurados se pronunciam sobre o fato “no modo que os códigos determinarem”. O Juiz de direito é perpétuo (sujeito à perda do cargo apenas por sentença), mas não inamovível. Pode ser suspenso pelo Imperador depois de audiência do Conselho de Estado, processado pela Relação do distrito. Responsável por abusos de poder ou prevaricações (lei de responsabilidade a ser regulamentada). Suborno, peita, peculato e concussão são crimes de responsabilidade passíveis de ação popular, a serem intentadas no prazo de um ano por qualquer um do povo. Determina como segunda e última instância as Relações nas Províncias e que as causas crime serão públicas depois da Pronúncia. É requisito da peça que inicia o processo mencionar a tentativa frustrada de reconciliação, para a qual haverá os juízes de Paz, eleitos na mesma forma que os Vereadores das Câmaras, com atribuições e Distritos regulados por lei. Na Capital, além da Relação, haverá o Supremo Tribunal de Justiça, com juízes tirados das Relações por antigüidade, com a competência de apreciar revistas, conforme a lei determinar, conhecer, em competência originária, delitos e erros de altas autoridades e julgar os conflitos de jurisdição.
[24] Em 1808, também a parcela judiciária da metrópole foi trazida ao interior da Colônia: em 10 de maio de 1808, por Alvará régio, a Relação do Rio de Janeiro (criada em 1751) havia se transformado na “Casa de Suplicação do Brasil”. Pareando, em termos hierárquicos, a Relação da Bahia (criada em 1587 e recriada em 1652), em 1812 foi instituída a do Maranhão e, em 1821, a de Pernambuco, seguida de uma expansão do quadro judiciário mediante criação de postos e ofícios de Justiça pelo território. Conforme testemunho do viajante Auguste de Saint-Hilaire, analisado por Ivan Vellasco, passava a ser mais fácil conseguir informações na nova Corte do que em Lisboa. Assim, acima das três Relações restantes (integradas por governador, chanceler, desembargadores e dois ouvidores gerais) estava a Casa de Suplicação (integrada por regedor, chanceler, oito desembargadores, corregedores, entre outros), e abaixo delas os Ouvidores (um por comarca, nomeados pelo rei), a Junta do crime, os Juízes de fora, os ordinários, os de órfãos, os Almotacés e os Juízes de Vintena, além de outros juízes específicos (VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem – violência, criminalidade e administração da justiça – Minas Gerais, século XIX. São Paulo: Edusc/Anpocs, 2004, pp. 93-95 e LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. Cit., pp. 263-273). O que torna mais inteligível a redação do art. 163 da Constituição de 1824, que restaura a Relação do Rio de Janeiro: “Na capital do Império, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça (...)”. Observe-se que mesmo o Decreto de 1º de outubro de 1821, das Cortes Gerais, na prática, não modifica o aparato judiciário alterado em 1808, que permanecerá praticamente incólume até o início da “década liberal” (COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit.).
[25] FLORY, Thomas. El juez de Paz y el jurado en Brasil imperial. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, pp. 66-68. Flory relata que a compra de decisões judiciais era prática comum. A experiência educacional e a consciência corporativa são vistas por muitos como causa da opressão colonial que resistia a 1822: “las demandas más urgentes de los reformadores después de la Independencia fue el establecimiento de facultades de derecho brasileñas para remplazar ‘la antigua fábrica’ de Coimbra”. A morosidade da justiça, a venalidade das decisões e das práticas forenses, as críticas aos advogados entusiastas de lides triviais, que se acumulavam, constituindo um “mercado das leis”, conduziram também à previsão constitucional de um juízo prévio de conciliação. Previsto já pelas Cortes Gerais, o Juiz de Paz se tratava de um mecanismo jurídico moderno àqueles homens. Observe-se, ainda, que o advento de uma nova constituição gerou o sentimento de liberdade e, também, de que o corpo normativo que o precedeu não estaria mais em vigor, tendo, por isto, perdido parte de sua legitimidade (Idem, p. 75), o que apenas serviu para agravar a desconfiança sobre o Juiz de fora e, conseqüentemente, sobre o Poder Judiciário em geral, o que incluía a polícia, pois corpos indistintos na concepção institucional portuguesa.
[26] Idem, p. 71. Flory se refere, entre outras, à fala do Trono de 1827. Tratava-se de um grande risco ao Imperador reformar o sistema judiciário, uma vez que “la influencia judicial era tan penetrante y se hacia sentir con tanta fuerza” que “en ninguna otra rama del gobierno la reforma habría tenido repercusiones más inmediatas sobre la mayoria de los brasileños”. A fala deve ser colocada em um contexto não muito favorável a D. Pedro: o acréscimo tributário, o aumento da circulação de moedas falsas, os gastos das guerras de Independência, a indenização paga a Portugal, a disputa pelo território da Cisplatina e a própria identificação do Imperador com os interesses da antiga metrópole, faziam esboroar as suas bases políticas (SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999).
[27] Idem, pp. 82-83.
[28] Esquematicamente: (a) Juiz Ordinário, eleito de forma indireta a cada três anos, tinha autoridade sobre questões civis limitadas pelo valor da causa e, durante o século XVIII, foram substituídos nas cidades mais importantes pelos juízes de fora. Identificados com o período colonial, eram acusados de falta de preparo técnico, patronato em assuntos de interesse local e abusos eleitorais; (b) Juiz de Vintena, autoridade muito restrita, sem autoridade penal, ou civil sobre bens de raiz. Nomeados pelos conselhos municipais em vilarejos localizados a uma légua ou mais da sede da cidade/condado, com vinte ou mais famílias. Foi totalmente substituído pelo Juiz de Paz; (c) Juiz de Almotaçaria, ou almotacel, cargo ocupado por um mês consecutivo somente, objeto de burlas, cuja função era colocar em vigor as regras prescritas pelo conselho municipal (Idem, pp. 86-91).
[29] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei de 15 de outubro de 1827, art. 1º. Em conformidade com os parágrafos do art. 5º da lei, competia ao Juiz de Paz a tentativa de conciliação, o julgamento de pequenas demandas, a manutenção da ordem pública, cabendo-lhe a prerrogativa da coerção aos amotinadores, a custódia do bêbado, evitar rixas, mediante lavraturas de termos de bem-viver, destruir e evitar a formação de quilombos, fazer corpo de delito, interrogar e prender o delinqüente indiciado, remetendo-o ao Juiz criminal, observar as posturas policiais da câmara, relacionar e prender os criminosos, informar ao Juiz de Órfãos acerca do menor, vigiar a conservação das florestas e matas públicas, obstando cortes ilegais de madeira, informar ao Presidente da Província sobre descobertas minerais, vegetais ou animais no seu distrito, buscar compor todas as contendas, dividir o distrito em quarteirões com, no máximo, 25 fogos, nomeando um oficial para cada um deles, para seu auxílio. Cada Juiz de Paz teria um escrivão (art. 6º) e, se desobedecido, poderia lavrar termo de desobediência (art. 9º). As penas máximas que poderiam aplicar seriam: (a) multa de até trinta mil réis; (b) prisão (‘retenção’) de um mês; e (c) recolhimento (‘detenção’) à Casa de Correção, ou Oficinas Públicas, por três meses (art. 11º). Da sentença penal condenatória, os autos deveriam ser remetidos ao Juiz criminal que, acompanhado de dois juízes de Paz, poderia confirmá-la ou revogá-la, passando em julgado o decisório (arts. 13 e 14).
[30] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei de 11 de agosto de 1827. arts. 1º e 2º. Coincidentes com as necessidades e interesses do Estado a ser forjado, as matérias a serem ministradas pelos dois cursos, divididas em nove cadeiras (ocupadas por nove lentes proprietários e nove substitutos) eram: direito natural, direito público, análise da constituição, direito das gentes, diplomacia, direito público eclesiástico, direito pátrio civil, direito pátrio criminal com a teoria do processo criminal, direito mercantil e marítimo, economia política, teoria e prática do processo adotado pelas leis do império.
[31] Idem. Lei de 11 de agosto de 1827. art. 7º. Mais revelador ainda desta preocupação de forjar um Estado é o longo projeto de regulamento ou estatutos, criado pelo Decreto de 09 de janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde da Cachoeira, a ser aplicado interinamente até que a congregação dos Lentes de cada curso apresentasse outros – a serem igualmente submetidos à Assembléia Geral. Outras normas importantes para a pesquisa foram editadas no mesmo ano: Decreto de 13/09, que regula a liberdade de imprensa; Decreto de 18/09, que trata das revistas de Graça das sentenças; Decreto de 11/10, sobre como suprir os autos das devassas; e a Lei de 15/10, que regulamenta os crimes de responsabilidade de Ministros e Conselheiros de Estado.
[32] Idem. Também em 1828 são editadas as seguintes normas: Lei de 27/08, que regulamenta os Conselhos Gerais de Província; Lei de 30/08, que trata da prisão sem culpa formada (procedimento cautelar); Lei de 22/09, que extingue o Desembargo do Paço; Lei 23/09, que regula o rito processual criminal; Lei de 24/09, que determina a apelação de ofício para condenações à pena capital; Lei de 27/09, que trata das eleições para as Câmaras Municipais; e Lei de 01º/10, que remodela as Câmaras Municipais e determina a forma de eleição dos vereadores e dos juízes de Paz.
[33] Duas forças provavelmente contribuíram para a aprovação do projeto de Lei do Senado, contrapartida do poder local eletivo do Juiz de Paz, por parte da Assembléia Geral. A primeira, o temor do governo geral pelo poder das Câmaras, responsáveis tanto pela aclamação do Imperador, endossando a carta de 1824, como pela conflagração da Confederação do Equador. A segunda, o seu papel como tradicional símbolo do poder colonial, cuja lembrança se preferiria extirpar. Para Miriam Dolhnikoff, a lei foi o primeiro passo para neutralizar estes órgãos e submetê-los ao aparelho de Estado, reduzindo drasticamente o âmbito da sua competência, sentido centralizador desejado por D. Pedro (DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 13). Seja qual for a explicação, trata-se claramente de exemplo de instituição que vai se amoldando aos novos projetos políticos.
[34] FLORY, Thomas. Op. Cit., pp. 171-175. Para Flory, as discussões sobre o código criminal giraram em torno do compromisso com os ideais liberais e aversão ao passado colonial, bem como ressentimentos com a magistratura profissional, quadro ladeado pelo anseio de se erguer uma estrutura jurídica de oposição ao Imperador, já sem cabedal político para vetar a norma. Crimes políticos deixam de ser puníveis com morte ou galés e a legitimidade ativa do tipo penal se restringiria, nestes casos, ao líder. Conforme José Reinaldo Lopes, o projeto era de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos, sobre as bases apresentadas por José Clemente Pereira em 1826 (LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. Cit., p. 287). São de 1830 também a Lei de 26/08, que concede favores aos estudantes regressos de Coimbra; o Decreto de 26/08, que abole o Juiz almotacel; a Lei de 27/08, que regula o direito testamentário; o Decreto de 13/09, que estabelece regras para a eleição do Juiz de Paz; a Lei de 20/09, que regulamenta o abuso da liberdade de imprensa; a Lei de 30/10, que equipara os escrivães dos Juizados de Paz do interior a tabeliães; e o Decreto de 20/12, que dispõe sobre o Supremo Tribunal de Justiça (COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit.).
[35] CASTRO, Paulo Pereira de. “A experiência Republicana” In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico, Vol. 04 “Dispersão e Unidade”, São Paulo: DIFEL, 1985, p. 22. Paulo de Castro chama atenção à Lei de 05 de junho de 1831, seguida dos atos complementares de Diogo Feijó, que conferiam faculdade ao Governo Central para suspender, substituir e apenar o Juiz de Paz, tornando-o “agente policial do Governo” (Idem, pp. 39-40).
[36] FLORY, Thomas. Op. Cit., pp. 175.
[37] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei de 29 de novembro de 1832. Dispõe que os Distritos serão aqueles marcados, administrativamente, pelas Câmaras Municipais, com, no mínimo, setenta e cinco casas, enquanto que termos e comarcas serão divididos pelos Presidentes de Província, e, no Rio de Janeiro, pelo Governo Central, sob os critérios de concentração, dispersão e necessidade dos habitantes (arts. 1º a 3º). Na jurisdição territorial do (a) Distrito há: 01 Juiz de Paz, 01 escrivão, 01 inspetor para cada um dos quarteirões, e quantos oficiais de Justiça forem necessários. Na do (b) Termo (ou Julgado), há: 01 Conselho de Jurados, 01 Juiz Municipal, 01 Promotor Público, 01 escrivão das execuções e quantos oficiais de Justiça forem necessários. Na da (c) Comarca, há: 01 Juiz de Direito, sendo que, nas cidades populosas, poderá haver até 03, sendo um deles o Chefe da Polícia (arts. 4º a 6º). Observe-se que o Chefe de Polícia é puramente um nome diverso, uma vez que sem nenhuma atribuição específica. Poderá haver, ainda, um só Conselho de Jurados para dois ou mais Termos (art. 7º). O código extingue: Ouvidorias de Comarca, Juízes de Fora, Juízes Ordinários e demais jurisdições criminais de primeira instância (art. 8º) e modifica o modo de eleição do Juiz de Paz (arts. 9º-11º).
[38] Ibidem. Compete ao Juiz de Paz: obrigar ao termo de bem viver aos “desordeiros”, ao termo de segurança aos “suspeitos” (espécie de certidão penal negativa, que vale como ‘salvo conduto’ em todo território do império), proceder ao corpo de delito e à formação da culpa, prender culpados, conceder fiança, julgar contravenções às Posturas das Câmaras Municipais, julgar crimes (apenáveis com multa até cem mil réis, prisão/degredo/desterro até seis meses, com multa até metade deste tempo, e três meses de Casa de Correção, ou Oficinas Públicas), e dividir o Distrito em quarteirões (art. 12).
[39] Ibidem. Arts. 14-19.
[40] Ibidem. Arts. 33-35.
[41] FLORY, Thomas. Op. Cit., p. 179. A própria lei é clara ao preferir, para lotação do cargo de Juiz de Direito, “os que tiverem servido de Juízes Municipaes, e Promotores” (art. 44, Código de Processo Criminal, COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit.).
[42] Ibidem. Arts. 44-47. São as atribuições do Juiz de Direito: presidir os Conselhos de Jurados em sua Comarca, sortear e instruir os jurados sobre o procedimento, reger a ordem das Sessões, regular os debates entre as partes, auxiliar o Conselho a chegar à verdade, conceder fiança ao réu pronunciado que a teve denegada pelo Juiz de Paz, ou revogar as concedidas e inspecionar os Juízes de Paz e Municipais.
[43] Ibidem. Conforme arts. 72-80 do Código Processual, o acusador será (a) o Promotor Público, ou qualquer do povo, no caso de denúncia. São passíveis de denúncia os crimes que não admitem fiança, de responsabilidade, os cometidos contra Imperador, imperatriz, príncipes ou princesas, ou membros da Regência, os crimes públicos, os de resistência à autoridade e naqueles crimes em que houver flagrância. O acusador será (b) o ofendido, no caso de queixa. São passíveis de queixa os crimes não contemplados pela denúncia. Tanto uma como outra deverão ser recebidas pelo Juiz de Paz, salvo competência originária superior ou discriminada pela Constituição de 1824.
[44] Ibidem. Arts. 254-274. Apenas no caso de pena de morte será necessária a unanimidade dos jurados (art. 332). As questões incidentais são resolvidas sumária e verbalmente pelo Juiz de Direito (art. 266). O Código de 1832 também prevê o “habeas-corpus”, isento de custas, a ser pedido contra prisão ou constrangimento ilegal (arts. 340-355), bem como disposições transitórias acerca da Justiça Civil. Ao Juiz de Paz cabe a conciliação de demandas cíveis, sendo prevista a citação por edital (“edictos”) aos ausentes. Prevêem-se também instrumentos acautelatórios, tais como arrestos, embargos de obra nova, entre outros. Frustrada a conciliação, os autos são remetidos ao Juiz Municipal, que diligenciará em todas as fases do processo, inclusive na posterior execução, mas exceto na fase da prolação da Sentença, que deve ser proferida, obrigatoriamente, pelo Juiz de Direito. Nas grandes povoações, o Juiz de Direito substituirá o Municipal. O Código revoga réplicas, tréplicas e embargos e reduzem os agravos de petição e de instrumento a ‘agravos do auto do processo’, do qual conhecerá o Juiz de Direito, se extraído de decisão do Juiz Municipal, ou a Relação, se de decisão do Juiz de Direito. Todo recurso de sentença passa a ser de apelação. Suprime os Corregedores (do Cível e do Crime) e Ouvidores (do Cível e do Crime). Para cada Juiz Municipal haverá um Juiz de Órfãos, com jurisdição contenciosa sobre família e sucessões em geral. Extingue-se o cargo de Chanceler das Relações. Cada Relação será presidida por um dos seus Desembargadores mais antigos, nomeado trienalmente pelo Governo. Ficam abolidos os Inquiridores (arts. 1º-27 das Disposições Transitórias acerca da Administração da Justiça Civil).
[45] VELLASCO, Ivan de Andrade. Op. Cit. p. 122.
[46] Ibidem. Para Thomas Flory, “Simbolicamente, el código de 1832 fue la Constituición de los liberales: uma contribución nativa, no contaminada por el mandato imperial” (FLORY, Thomas. Op. Cit., p. 178).
[47] Idem, p. 190.
[48] Idem, pp. 190-191.
[49] Idem, pp. 193-199. Flory conclui que as reformas liberais se caracterizaram como uma reação contra a experiência colonial aliada à admiração por modelos estrangeiros, ao experimentalismo do século XVIII e ao romantismo do XIX, jamais funcionando conforme previsto ou idealizado.
[50] Idem, pp. 213. “En 1832, Diogo Antônio Feijó reconoció que el gobierno tenía atadas las manos, y que sin embargo, ‘los jueces de paz a quienes se confia exclusivamente (la policía) no siempre dedican el tiempo necesario a su trabajo... ni tienen todos la inteligencia y circunspección necesarias’”.
[51] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei de 12 de outubro de 1832. “Artigo único. Os eleitores dos deputados para a seguinte legislatura lhes conferirão nas procurações especial faculdade para reformarem os artigos da Constituição”.
[52] DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 18. “Já em 1832 fora aprovada a lei que serviria de base para a formulação do Ato Adicional”. E também em DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. Origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 55. “O projeto de reforma constitucional aprovado na Câmara dos Deputados em 1832 (...) daria origem ao Ato Adicional”. Para Thomas Flory, a lei de 12 de outubro é evidência de que o desejo liberal de tornar à centralização administrativa seria anterior a 1834.
[53] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei nº 16 de 12 de agosto de 1834. Em conformidade com o ato, os Conselhos Gerais se tornam Assembléias Legislativas Provinciais, com 36 membros (PE/BA/RJ/MG/SP), 28 membros (PA/MA/CE/PB/AL/RS), ou 20 membros (demais Províncias), com mandato de dois anos, reelegíveis, invioláveis no exercício da função, com direito a subsídios (atividade exclusiva), reunindo-se em sessões anuais, por dois meses. Compete às Assembléias legislarem sobre as matérias previstas nos arts. 10º e 11º, entre as quais: a divisão civil, judiciária e eclesiástica, a mudança da Capital da Província, desapropriação (provincial e municipal), a polícia e a economia municipais, a fixação das despesas, a tributação (salvo imposto de importação) e respectiva fiscalização, a educação (salvo cursos de direito, medicina e outros definidos por Lei Geral), a criação/supressão de “empregos municipais e provinciais”, as obras públicas em geral, a Força Policial, a suspensão/demissão do magistrado acusado de responsabilidade. Art. 15: 2/3 dos deputados revertem o veto presidencial a projeto de lei. O Presidente da Província deve remeter atos legislativos à Assembléia/Governo Geral, para exame. Regência una, escolhida por eleições de quatro em quatro anos (art. 26 a 29: cada colégio eleitoral da província escolhe dois nomes, sendo que um deles não pode ser da Província da qual faz parte). Na falta ou impedimento do Regente, governa interinamente o Ministro de Estado do Império e, em seguida, o da Justiça (art. 30). Fica suprimido o Conselho de Estado (art. 32).
[54] BASTOS, Tavares. A Província – estudo sobre a descentralização no Brasil, São Paulo/Rio de Janeiro/Recife: Companhia Editora Nacional, 2ª edição, 1937 (1ª edição de 1870). “Não podia tal centralisação [da Constituição de 1824] resistir á prova da experiencia. Apoderou-se do assumpto a paixão política que os erros de D. Pedro suscitaram (...) No espirito de alguns homens illustres, a idéa assumia as largas proporções do systema federal. Foi o acto addicional (1834) redigido sobre a constituição preparada em 1832 [a ‘Constituição de Pouso Alegre’] (...) a gloriosa reforma que consumou a independencia do Brazil”. Esta interpretação encontrará eco na obra de Oliveira Viana (VIANNA, Francisco José de Oliveira. O ocaso do império. Rio de Janeiro: José Olympo, 1959).
[55] FLORY, Thomas. Op. Cit., p. 246. “(…) la provincialización tendría el efecto neto de una centralización intermedia, que colocaba em manos provinciales poderes que correspondían anteriormente al nivel municipal o parroquial. Si la estructura liberal de los tribunales y de la policía había diseminado los poderes administrativos del gobierno central, luego el Decreto Adicional comenzó gradualmente la tarea de recuperarlos”.
[56] MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. 4a ed. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 129. “A votação do Ato Adicional em 1834, expressando um compromisso (...) acabava por tornar legítimas as desigualdades no interior do Povo”. Ilmar questiona a homogeneidade ideológica dos grupos senhoriais na formação do Estado imperial, buscando identificar a relação dialética que envolveu liberais e conservadores, na complexa construção da classe senhorial, como ordem e civilização e, em um período posterior, a identificação da Coroa como Partido que aliasse a manutenção da ordem escravista com a administração dos distintos interesses da sociedade, em uma forma hierarquizada.
[57] DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial... Idem, p. 14.
[58] Ibidem. “Se a opção pela monarquia tornava o Brasil uma exceção no continente, a escolha de um modelo de tipo federativo denunciava sua inapelável vocação americana”. Assim, a ampliação da representatividade das Províncias no Estado imperial foi uma forma de se atenderem às demandas regionais (e não locais, o que explicaria a aprovação da lei das Câmaras municipais de 1828 pelos liberais), o que possibilitava a redefinição das competências sem comprometer a unidade nacional. A monarquia de tipo federativo teria sido implantada já no início das reformas liberais da década de 1830, mas, sobretudo, pelo Ato Adicional de 1834 – plano inalterado pela revisão conservadora da década seguinte. Para Miriam, se o Presidente provincial jamais deixou de ser nomeado pelo centro, claro agente executivo do poder do Imperador na região, tratou-se da divisão equilibrada do aparato de governo, sem jamais se afigurar como empecilho ao amplo exercício da concepção federalista. Observe-se que o Ato de 1834 se preocupa em limitar ainda mais o poder das Câmaras municipais (Idem, pp. 81-118).
[59] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei nº 16 de 12/08/1834, art. 10º, § 7º.
[60] Havia duas teses em confronto: a primeira defendia que a expressão “empregos municipais e provinciais” se referiria àquele emprego da competência do município ou da província (criado por lei municipal ou provincial). A segunda, que a lei vaticinava o emprego localizado fisicamente no território do município ou da província, independentemente de ter sido criado por lei geral ou não.
[61] FLORY, Thomas. Op. Cit. p. 247. Em São Paulo, a “lei de prefeitos” foi editada em 1835.
[62] DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial... Op. Ci., pp. 118-125. “(...) em São Paulo (...), já na primeira legislatura da Assembléia paulista, em 1835, Diogo Antônio Feijó, então deputado provincial, propôs um projeto criando o cargo de prefeito, que foi aprovado naquele mesmo ano. Segundo ele, os prefeitos seriam aprovados pelos presidentes de Província, ou seja, pelo representante do governo geral, e sua atribuição principal seria executar as ordens recebidas do governo provincial (...) Poucos anos depois, em 1838, o projeto seria revogado devido à violenta reação das Câmaras Municipais”.
[63] CASTRO, Paulo Pereira de. Op. Cit., pp. 55-69. “Feijó contou com 2.826 votos. Logo a seguir, com 2.251, veio Holanda (...) Corriam boatos de que Feijó não tomaria posse porque sabia que não contava com apoio parlamentar (...) Já na sessão de 1836 tornar-se-ia patente que seu Governo seria inviável (...) A renúncia tornou-se para ele um imperativo” (Idem, p. 55). Na verdade, um fator determinante para a renúncia foi o fato de Holanda Cavalcanti haver recebido a maioria dos votos nas velhas províncias agroexportadoras: “Cavalcanti venceu em Santa Catarina, Rio de Janeiro e ao longo da fachada atlântica desde a Bahia até a Paraíba. Mesmo em São Paulo, a vitória de Feijó foi assegurada pelo interior: na capital, no Vale do Paraíba, em Santos, em Iguape, em Paranaguá, Feijó perdeu” (Idem, p. 58).
[64] DOLHNIKOFF, Miriam. Caminhos da Conciliação... Idem, p. 20. “(...) foi justamente a partir de 1835, quando foram pela primeira vez instaladas as primeiras assembléias legislativas provinciais, que eclodiram as mais violentas revoltas contra o governo central”. Destacam-se: a Revolta dos Malês, 1835, na Bahia, a Farroupilha, 1835-1845, no Rio Grande do Sul, a Cabanagem, 1835-1840, no Pará, a Balaiada, 1838-1841, no Maranhão, e a Revolução Liberal, 1842, em São Paulo e Minas Gerais.
[65] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 204. “As conseqüências da descentralização produzida pelo Código de Processo de 1832 e pelo Ato Adicional de 1834 e as rebeliões provinciais da Regência é que iriam, ao final da década, possibilitar a formação dos dois partidos (...). O Partido Conservador surgiu de uma coalizão de ex-moderados e ex-restauradores sob a liderança do ex-campeão liberal Bernardo Pereira de Vasconcelos e propunha a reforma das leis de descentralização, num movimento chamado pelo próprio Vasconcelos de Regresso. Os defensores das leis descentralizadoras se organizaram então no que passou a ser chamado de Partido Liberal”.
[66] FLORY, Thomas. Op. Cit. p. 253.
[67] CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil na Independência a meados do XIX”, In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina – Volume III: da independência até 1870. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2003. pp. 728-730. “Em 1837, a morte de Evaristo da Veiga deixou Feijó sem seu maior defensor no parlamento e na imprensa (...) As eleições para o novo legislativo já haviam apontado a mesma direção: todos os chefes da oposição a Feijó foram reeleitos (...) o total de magistrados eleitos ao legislativo, mais inclinados ao conservadorismo, elevou-se de 24 para 39 por cento, enquanto que o número de padres, em sua maioria liberais, caiu de 23 para 12 por cento”. José Murilo aponta que o novo gabinete se tratou de “uma aliança de magistrados, fazendeiros de café e senhores de engenho”.
[68] CASTRO, Paulo Pereira de. Op. Cit., p. 72. “Ao tomar assento na Câmara, em 1837, antes mesmo da queda de Feijó, Paulino apresentara, como relator, seu projeto de interpretação, o qual também foi subscrito por Honório e Calmon”. O projeto de reforma foi apresentado em 1839, pelo ex-chimango Bernardo de Vasconcelos. Contudo, os liberais retornariam ao ministério em 23 de julho de 1840, com o golpe da maioridade. Seu gabinete maiorista cairia novamente, por diferenças internas, em março de 1841 e, na nova configuração conservadora, Araújo Viana figurava como tutor de D. Pedro II e Paulino Soares de Souza como Ministro da Justiça. As fraudes ocorridas nas eleições para a legislatura da Câmara que iniciaria em 1842, que chamadas eleições do cacete, possibilitaram a sua dissolução pelo gabinete palaciano antes do início dos trabalhos legislativos (Idem, pp. 72-74).
[69] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit., Lei nº 105, de 12 de Maio de 1840. “Interpreta alguns artigos da Reforma Constitucional”. Sobre o art. 10º, §4º do Ato: as Assembléias Provinciais apenas poderão legislar sobre a polícia e a economia municipais a partir de proposta precedente das respectivas Câmaras. Esta polícia é estritamente a municipal e administrativa, não compreendendo a polícia judiciária. Sobre o art. 10º, §7º do Ato: a criação/supressão de empregos municipais e provinciais será apenas quanto ao seu número, sem que possa alterar sua natureza ou atribuição se o cargo foi criado por Lei Geral. Sobre o art. 10º, §11º do Ato: decidem sobre os casos e a forma de nomeação/suspensão/demissão dos empregos de sua competência, e jamais aqueles estabelecidos por Lei Geral. Sobre o art. 11º, §7º do Ato: a palavra magistrado não compreende os membros das Relações e de Tribunais Superiores. Somente poderão as Assembléias decretar suspensão/demissão dos magistrados em virtude de queixa, por crime de responsabilidade previsto em lei anterior. A decisão deverá ser fundamentada (relatório com fatos, base legal e “fundamentos capitais” da decisão), e obedecerá à forma do processo na Justiça comum. Sobre o art. 16 do Ato: está implícito o caso em que o Presidente da Província nega sanção a projeto por entendê-lo inconstitucional. Por fim, em seu art. 8º, a Lei de Interpretação determina que normas em contrário não estão revogadas, salvo por atos específicos do Poder Legislativo Geral.
[70] FLORY, Thomas. Op. Cit. p. 256. “La interpretación de Decreto Adicional fue precisamente una invitación encaminada a tener más allegados, em la que se buscaba el apoyo de los magistrados profesionales”. O escritor, político e jurista José de Alencar discordava de que a expressiva votação fosse reflexo da popularidade da medida, tendo sido muito mais a aprovação do grupo dominante da Câmara: “Alencar señaló que de los 56 diputados que votaron por el proyecto de Ley de Interpretación, 43 eran ‘miembros de uma clase, y solo 13 representaban a otras clases”.
[71] Idem, p. 266.
[72] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit., Lei nº 261, de 03 de dezembro de 1841. Os delegados (dos distritos) e subdelegados são escolhidos entre juízes e cidadãos. Os cargos são amovíveis e os nomeados são obrigados a aceitar (arts. 1º a 3º). Aos chefes de polícia e delegados compete: julgar crimes e contravenções do art. 12, §§ 1º a 7º do Código de Processo de 1832, conceder passaporte (que passa a ser obrigatório em todo o território), termos de segurança e de bem viver, compor auto do corpo de delito, formar a culpa e prender culpados (arts. 4º e 12º). Os chefes de polícia são competentes também para conceder fiança aos réus que pronunciarem ou prenderem, tomar providências acerca de atividades/sociedades/ajuntamentos ilegais, prevenir crimes e velar pela paz pública, propor posturas, inspecionar, fiscalizar, conceder mandados de busca e remeter dados ao juízo competente para a formação da culpa. São extirpadas todas as atribuições criminais e policiais do juiz de paz (art. 6º).
[73] Ibidem. Também nomeados pelo Imperador, entre bacharéis em direito com, no mínimo, uma no de prática forense, servem por quatro anos, podendo, ao final, serem reconduzidos ao cargo ou realocados. Recebem ordenado fixo e têm competência para julgar crimes de contrabando (exceto o de africanos e aqueles apreendidos pela Fazenda, submetido ao contencioso administrativo), as atribuições que pertenciam ao juiz de paz, sustentar ou revogar, ex officio, as pronúncias das autoridades policiais, apreciar queixas contra o Juiz de Direito, onde não há Relações, facilitar ao queixoso a instrução, conceder fiança ao réu que pronunciar ou prender, julgar a suspeição de subdelegados e substituir o Juiz de Direito em sua falta ou impedimento (arts. 13-21) Ao juiz municipal é delegada toda a competência civil, limitada por valor. Seu poder é grande, uma vez que a sentença proferida produz a coisa julgada. É juiz de execução também (de decisões suas, dos juízes de direito e das Relações), acumulando, residualmente, toda a jurisdição cível (art. 114). Observe-se que o juízo especializado da família e sucessões, o Juiz de Órfãos, é também nomeado pelo Imperador entre bacharéis, nos mesmos termos do Juiz Municipal, restando abolidos os juízes cíveis (arts. 115-118).
[74] Ibidem. Nomeados e demitidos pelo Imperador ou pelos Presidentes das Províncias entre bacharéis em direito, servirão o tempo que convier, havendo pelo menos um Promotor Público por Comarca. Na falta, será nomeado um, interinamente, pelo Juiz de Direito. Seu ordenado será acrescido de gratificação por libelo, sustentação no Júri e arrazoado escrito (arts. 22-23).
[75] Ibidem. O Juiz de Direito, vitalício, é nomeado pelo Imperador entre bacharéis em direito, maiores de 22 anos, com, no mínimo, um ano de prática forense, de preferência ex-juízes municipais ou ex-promotores públicos. Como ato de disposição transitória, estabelece que, em quatro anos da publicação da lei, somente poderá ser nomeado Juiz de Direito aquele que, por pelo menos quatro anos, serviu com distinção como juiz municipal, juiz de órfãos ou promotor público. Além das atribuições do Juiz de Direito previstas no art. 46 do código instrumental de 1832, compete-lhe também: formar a culpa e julgar os crimes de responsabilidade de empregados públicos não-privilegiados, julgar suspeição de juízes municipais e delegados, nos crimes públicos, dar andamento ao processo e correr os termos da Comarca, examinando e presidindo as Correições (arts. 24-26).
[76] Ibidem. A lista para a formação do corpo de jurados, formado por 48 membros, passa a ser elaborada pelo Delegado de Polícia, e revisado pela Junta formada pelo juiz de direito, promotor e presidente da câmara municipal. As sentenças de Pronúncia prolatadas pelos chefes de polícia e juízes municipais (bem como aquelas proferidas pelos delegados/subdelegados confirmadas pelo juiz de paz) sujeitam o réu à acusação e ao Júri. O juiz de direito propõe aos jurados as questões de fato para resolver a causa: se o réu praticou o fato descrito no libe-crime e sob qual circunstância, se houve agravante, situação de isenção de pena, no caso de réu menor, se obrou com discernimento, se há atenuantes. Os quesitos são respondidos em escrutínio secreto. A pena de morte exige 2/3 dos votos e, nas demais, maioria absoluta. Em caso de empate, decide-se em favor do réu. O Juiz de Direito fixa a pena com base nas respostas aos quesitos. O decisório criminal torna incontroversa a questão para fins civis (indenização). A indenização deverá ser proposta em ação própria no juízo competente. (arts. 27-30, 54-68 e 107).
[77] FLORY, Thomas. Op. Cit., pp. 269-270. O Ministério da Justiça controla toda a burocracia imperial.
[78] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Lei de 23 de novembro de 1841. O Conselho de Estado é composto por 12 membros ordinários e vitalícios (mas dispensável pelo Imperador), além dos Ministros de Estado, sob a Presidência do Imperador. Podem ser nomeados mais 12 membros extraordinários, que servirão no impedimento dos ordinários e quando forem chamados para consulta. São responsáveis pelos conselhos que derem ao Imperador, passíveis de julgamento pelo Senado. Para ser Conselheiro, há os mesmos requisitos que aqueles necessários para ser senador. Pelo conselho passariam pedidos, recursos, conflitos de jurisdição, questões de política judiciária e política constitucional, segundo prolífico artigo de José Reinaldo Lopes (LOPES, José Reinaldo de Lima. “Consultas da Seção de Justiça do Conselho de Estado (1842-1889). A formação da cultura jurídica brasileira” In: Revista eletrônica Almanack braziliense, maio de 2007, disponível em ).
[79] LIMA, Marco Antunes de. A cidade e a Província de São Paulo às vésperas da Revolução liberal de 1842. 2º Relatório de Iniciação Científica apresentado à FAPESP. São Paulo: Revista Klepsidra, Ano III, nº 15, fevereiro/março de 2003, disponível em < http://www.klepsidra.net/klepsidra15/klepsidra15.html>, pp. 65-69. É significativo notar que a demanda por bacharéis em direito tenha esvaziado a Assembléia conservadora, o que permite que se levante a questão sobre quantos juristas haveria entre os dois partidos.
[80] ANAIS da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo (1835-42). São Paulo: Tipografia Piratininga, 1923, p. 29.
[81] Idem, pp. 29-35.
[82] Idem, pp. 69-70.
[83] DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial... Op. Ci., pp. 14-15.
[84] Ibidem, p. 14. E, baseada no fato de que o Regresso não modificou substancialmente o pacto federativo, uma vez que, no século XIX, ele é, sobretudo, a divisão de competências, afirma que “a adoção do regime monárquico e a centralização do Judiciário pelos conservadores vitoriosos na década de 1840 (...) levaram os historiadores a tomar como pressuposto de que a federação passara ao largo do Brasil imperial. No entanto, monarquia (...) não era incompatível com federalismo, e a revisão conservadora não desfez nos seus fundamentos o edifício construído a partir de 1831”.
[85] Idem, passim. Miriam recorda que, aos teóricos liberais, o federalismo seria a divisão das competências legislativas. E que o ato de 1834 seguia o modelo anglo-saxão.
[86] GRESPAN, Jorge, “O esclarecimento: ruptura ou tradição”, In: Revista de História. São Paulo: EDUSP, nº 136, 1º/1997, pp. 101-105. “O argumento do qual se deduz o elogio kantiano é interessantíssimo: ‘somente aquele que, sendo ele próprio esclarecido, não tem medo de sombras, e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: “raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei!”’”. Neste sentido se compreende a formalidade do direito: se o foro íntimo é o lugar da liberdade e da opinião, quanto mais forte é o Estado, maior o garantismo aos direitos individuais – a força é o princípio da afirmação da razão de Estado.
[87] Ibidem. “Como diz Montesquieu, em uma de suas Cartas Persas: ‘deve-se mudar a lei pela lei, e o costume pelo costume’; em outras palavras, não se pode mudar um costume através de uma lei, como recomendavam os adeptos do ‘Despotismo Esclarecido’, e sim através da educação, retomando então o projeto geral da Enciclopédia”.
[88] Na primeira vertente, como os costumes nem sempre são adequados à razão, pois superstições ou falsas crenças, o monarca esclarecido deve impor a sua razão para civilizar o irracional: a raison do déspota é legitimada pela finalidade modernizante que só ele conhece, rompendo com o costume envolto em sombras. Já na segunda vertente, “(...) a razão não aparece como ruptura com a tradição, do direito costumeiro, e sim como sua confirmação. Na crítica liberal, o Absolutismo significa uma violação da lei consuetudinária, dos costumes legítimos de um povo arbitrariamente desdenhados pela vontade caprichosa de um tirano (...) Daí que, como observa Habermas (1963), a concepção clássica de ‘revolução’, pretenda antes um retorno à tradição do que uma ruptura em relação a ela (...) [mas] a crítica implica já uma ruptura” – (Ibidem).
[89] KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução: Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro: Editora da UERJ/Editora Contraponto, 1999, pp. 31 e 35.
[90] HESPANHA, António Manuel. “Um poder um pouco mais que simbólico. Juristas e legisladores pelo poder de dizer o direito”. Artigo inédito, 2007, 31 p. O historiador e jurista português parte do conceito de campo jurídico de Bourdieu (BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico” e “A força do direito – elementos para uma sociologia do campo jurídico”, In: O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 2004, pp. 07-15 e 209-254).
[91] Ibidem.
[92] Ibidem. A função dirigente da lei e da constituição é claro obstáculo à supremacia dos juristas, pois reduz o empenho doutrinal à mera exegese e vincula o julgador à motivação das suas decisões, reduzindo-o a aplicador da lei. Hespanha relata que, nas Cortes de Lisboa, fazendo eco a Jeremy Benthan, os debates revelaram críticas hostis ao grupo de juristas e profissionais das leis, que, como eram muitos, trataram de erguer óbices às limitações do seu poder.
[93] Ibidem. Interpretar se aproxima progressivamente do ato de descobrir o sentido, de se destilar a pureza do bom e do justo, apreensíveis pelo método prudente da reta razão. Constrói-se a idéia de que, a partir deste método especial, seria possível se alcançar um determinado código de condutas que preservasse o gênio da nação originária. E, com a tendência a se positivar cada vez mais o direito natural, a interpretação do direito passa a ser a interpretação da lei. A atuação do jurista em torno da lei no século XIX é anterior à sua própria elaboração: o letrado, nomeado pelo rei em comissão, pode elaborar o Projeto da lei. Pode, ainda, como filósofo, político ou assessor, influenciar o representante do povo no Parlamento. Depois de feita, poderá ser submetida a seu controle, para que verifique se harmoniosa ou não com a unidade do sistema jurídico. A partir destas considerações, Hespanha reparte as leis constitucionais, ou constituintes, como (a) as que se contêm (de iure condito) em uma constituição política, ou seja, quando o jurista trata do direito já estabelecido (lege lata), aquele que contém, no sentido de limitar, o âmbito da interpretação. E (b) as que devem conter-se (de iure condendo), ou seja, quando o filósofo ou o legislador trata do direito que deveria estabelecer-se (lege ferenda), aquela lei a ser feita, ou modificada, ou revogada e que deve ser contida, no sentido de mantida.
[94] Ibidem.
[95] Ibidem. Hespanha colhe diversos depoimentos, a partir dos anos 1840, sobre esta reaquisição de poder, a partir de vieses romântico-doutrinários (declarações sobre o primado da razão, sobre os efêmeros arranjos políticos da câmara, dependente do temperamento dos povos, barreira a uma concisão sistêmica minimamente sólida), técnicos (tradição dogmática dos autores praxistas e pós-liberais, consenso da necessidade das codificações nas nações mais civilizadas, sob grande influência do código napoleônico) e até mesmo democráticos (no concernente aos direitos da filosofia na construção do direito). “Os juristas reclamam para si uma especial sagesse (...). Nesta coabitação [de juristas e legisladores], o espaço mais restrito é, como se vê, o do legislador, entalado entre a sabedoria quase sacral dos juristas e a artesania casuística dos juízes (...). Esta recuperação da tradicional função dos juristas de criar e de legitimar o direito é, portanto, levada a cabo a partir de 1804 (...) no campo jurídico impera, agora soberanamente, a idéia de um ‘império da razão’, adverso da criação parlamentar do direito e, em contrapartida, adepto de uma sua legitimação pela autoridade racional ou científica”. Este o raciocínio colhido por Hespanha de Jean-Etienne-Marie Portalis.
[96] Ibidem. Diferente do que ocorre com os legisladores, que carecem de habilitação e de estudos próprios, por este motivo, incapazes de enxergar, para além da lei, os valores e bens jurídicos universais; em outros termos, se a razão não é de todos, a lei não pode ser escrita para todos. Dos testemunhos da época selecionados por Hespanha, destacamos: Almeida Garret, Basílio Alberto, Manuel Antonio Coelho da Rocha e, sobretudo, Manuel Almeida e Souza (o Lobão).
[97] Ibidem. Ainda que a edição da Lei da Boa Razão portuguesa se apresentasse como ruptura deste quadro do ius commune, autorizava o recurso à subjetividade do juiz, permitindo amplo uso do expediente analógico ao direito romano, ao direito estrangeiro e ao próprio direito natural. Ainda que as próprias constituições se impusessem sobre a doutrina, não estavam imunes à interpretação, havendo sempre uma espécie de constituição implícita sobre a constituição formal, com triplo fundamento: o conjunto dos direitos adquiridos (direito fundamental histórico do reino), o direito público universal (teoria dos governos liberais) e as ciências do direito civil e do direito público (Almeida Garret argumentaria, neste ponto, que, se a Constituição formal não se adaptar à constituição de princípios supra-positivos, pode ser revogada pelo jurista, mais apto a interpretá-la que o legislador).
[98] Ibidem. A imparcialidade científica da Universidade de Coimbra era apenas imaginária, “mas a sua imagem era a de pessoas recolhidas na Lusa Atenas” e, desta forma, “podiam opor aos arranjos legislativos (...) a neutralidade do seu saber”. Na tradição deste poder, apenas aparentemente simbólico, serão cultivados os muitos bacharéis brasileiros que, ao retornarem, terão a tarefa de construir um Estado.
[99] HESPANHA, Antonio Manuel. “Justiça e Administração entre o Antigo Regime e a Revolução”. In: Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 135-145. Pela graça, o Rei pode, por exemplo, comutar uma pena de morte. Hespanha, neste estudo, parte dos princípios de que, se a política é diferente da economia pelo caráter comum dos bens que persegue, a justiça é diferente da economia por envolver os interesses duais e contraditórios da contenda. A economia (implicitamente entendida como oikos nomus, ou as regras da casa) tem apenas um interesse, um rumo, o familiar, e variável apenas pela oportunidade e pelo interesse privado, sem lugar para o exercício do judicium: “A teoria moderna foi particularmente expressiva sobre esta proximidade entre governar a cidade e governar a família (...) a assimilação entre um e outro ofício era profunda e de sentido não-metafórico, autorizando, nomeadamente, que as regras do governo doméstico valessem para o governo da cidade”. O rei deveria governar o reino como o pai a casa. Os parâmetros da ação graciosa do Rei-pai são a medida e a razão para se alcançar o justo, o que encontra seu limite no direito adquirido, porque “(...) não destrói a justiça – como não destrói a natureza – antes a aperfeiçoa”.
[100] Idem, p. 163. “O mundo da justiça é, assim, um mundo de idéias; mas é também um mundo de homens. Antes de mais, um mundo de juristas (...). Os estudos mais recentes da história das mentalidades, da história social e dos grupos profissionais não cessam de mostrar o papel central desempenhado pelos juristas na organização do espaço social moderno”. O direito, neste sentido, será o instrumento que disciplina mediante o monopólio legítimo da violência, difunde um quadro para a compreensão das relações político-sociais por meio da doutrina (suporte erudito) ou da rotina forense, e institui mecanismos cada vez mais eficazes para resolver conflitos entre indivíduos e grupos.
[101] MATTOS, Ilmar. Op. Cit., p. 130. Conforme sugerido por Ilmar Matos, tenta-se abandonar a idéia de “que ou se tinha um Estado forte e uma Sociedade fraca, ou um Estado fraco, instrumentalizado, e uma Sociedade forte”. Para isto, Ilmar concebe “a relação entre o governo da Casa e o governo do Estado como uma reação dialética, e não como uma relação dicotômica” e também porque não se preocupa com “a essência dos elementos em questão”. Em sua construção, a dinâmica da Casa/Liberdade/Vida Privada (primeiro como Colono e, depois, como Cidadão Ativo) é o campo do liberal, enquanto que a do Estado/Ausência de Liberdade/Público (do colonizador, “pés-de-chumbo”), é o do não-liberal. Ambos compõem o mundo do governo e seus limites são aqueles firmados no pacto constitucional. Enquanto a historiografia tradicional opõe “liberdade” a “autoridade”, Ilmar aponta que a Casa não se opunha apenas ao Estado, mas também à Rua (e esta a ambos). Os liberais da Casa não querem a revolução da Rua, mas o pacto, a transação. Ao separar Povo (detentor do princípio político e legislador, que dita a lei pautado por um princípio de liberdade negativa) de Plebe (que pode reivindicar, no plano da liberdade positiva, mas não dirigir nem dizer a lei), encontra uma fissura dentro dos liberais: a definição sobre quanto a plebe pode participar do povo. Para os saquaremas, isto não era uma questão; a plebe não devia participar. Os luzias sim, fariam parte do Estado, porém de maneira hierarquizada, de forma a atender aos anseios de uma Coroa, o único partido, que detém o monopólio da responsabilidade e impede um existir autônomo.
[102] COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à República – momentos decisivos. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 134.
[103] MATTOS, Ilmar. Op. Cit., Passim. Ilmar concebe que, pelo poder econômico, a sociedade civil pode emergir a sociedade política, ativando o cidadão, o que abandona a concepção estamental.
[104] Ibidem. Contudo, ao negarem a liberdade positiva, expurgando os exaltados, não apenas negavam voz à plebe/rua, como também restringiam a ação do povo/casa ao limitar a sua própria base eleitoral.
[105] Ibidem. O Poder Moderador deve ser livre para afinar os demais poderes, na forma de um árbitro neutro. O Rei define o rumo, a direção política. O Ministério executa o definido. O Poder Legislativo apóia e legitima. Assim, a liberdade saquarema se associa à segurança e à ordem: quanto maior a força do Rei, maior a liberdade. Suas principais matrizes teóricas são Hobbes (poder centralizado com redução da Casa como condição para sua preservação) e Benthan (o objetivo da lei é restringir e não liberar, pois toda lei é uma infração à liberdade). As individualidades dispersas (Províncias) devem ser forçadas ao justo meio (Centro). Um forçar sinônimo de conduzir à liberdade, e não tiranizar. Sem as convulsões da Casa e da Rua seria possível a Paz do Estado, a Razão nacional garantidora do bem comum.
[106] FLORY, Thomas. Op. Cit., p. 59.
[107] COLECÇÃO DAS LEIS DO BRAZIL, 1808-1850. Op. Cit. Idem.
[108] LOPES, José Reinaldo de Lima. “Consultas...”. Op. Cit., p. 06. Observe-se, ainda, que, até a Reforma de 1874, haveria apenas quatro Relações, e não uma por Província.
[109] Idem, pp. 08-09. “Havia duas tarefas simultânea e igualmente importantes. Uma era a de construir um estado nacional e, por implicação, um direito nacional o quanto possível autônomo do direito português e do direito colonial (...) A outra era a de erguer um estado constitucional liberal no qual as formas antigas de representação e participação política (...) fossem substituídas pelo novo ideário do Estado-nação, organizado segundo os princípios constitucionais. Assim, a tarefa que na Europa era de reforma e modernização, no Brasil era quase de invenção (...). Os juristas estiveram, portanto, ocupados com esta tarefa imediata e todos os juristas estiveram nela envolvidos de forma bastante absorvente, seja como legisladores, presidentes de províncias, ministros, ou seja como magistrados ou ‘oficiais’ de justiça e fazenda pelo menos”.
[110] ANAIS da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo (1835-42). Op. Cit., p. 29.
[111] HÖRNER, Erik. Guerra entre pares: a “Revolução Liberal” em São Paulo, 1838-1844. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 2005. Hörner busca, em sua dissertação, compor um painel das idéias e argumentos defendidos ao longo dos 160 anos que sucederam à Revolução Liberal de 1842, ocorrida em São Paulo, confrontando-os, a fim de construir uma interpretação renovada acerca do Estado imperial. Busca, primeiramente, a acepção da palavra “Revolução” (nos documentos políticos da época, nos relatos do Cônego José Antonio Marinho, de 1844, no dicionário de Antonio Moraes e Silva, de 1877, no Código Criminal de 1830, em Paulo Pereira de Castro, Gianfranco Pasquino, Hannah Arendt, Lawrence Stone, sobre Chalmers Johnson, e em Ilmar Mattos), tomando-a como um termo em aberto, a ser visto mais como uma proposta de análise do que como uma definição. Cita a metodologia de Carlos Alberto Vesentini, interessado em saber quando o fato se transforma em interpretação, apontando o perigo da análise que se limita à teia dos fatos e das interpretações, desapegada dos argumentos dos protagonistas e direcionando o conhecimento do passado. Vale-se, ainda, de Ecléa Bosi: um grupo que trabalha em conjunto organiza esquemas de narração/interpretação dos fatos, criando “universos de discurso e de significado”, base a uma visão consagrada dos acontecimentos. Assim, Hörner busca os olhares contemporâneos à Revolução, aqueles escritos depois de alguns anos da anistia de 1844, os olhares centenários, em sua maioria, confeccionados pelo grupo ligado ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHG-SP), e as perspectivas recentes, dissolvidas sobre a formação do Estado nacional. Fazendo isso, localiza a teia ou universo de significado que acabou por dar base a uma visão consagrada da Revolução de 1842.
[112] Ibidem. Trata-se, sobretudo, de uma estratégia eficiente de análise, uma vez que, conforme recorda Paulo Pereira de Castro, este é um momento de rearticulações, o início da formação dos futuros partidos das décadas de 1840 e 1850. Assim, os grupos eram conhecidos majoritariamente por “Partido da maioria” e “Partido da minoria”, contraste evidenciado em questões polêmicas, como a do Banco, que polarizavam os elementos a um ou outro lado, tornando mais visível o contorno de uma teia específica de interesses. Observa que, sem taquígrafos, não havia a prática da transcrição das falas integrais. Da mesma forma, dos projetos constam somente os artigos discutidos e as atas não tinham regras formais de confecção: eram redigidas por um deputado, sendo lidas e aprovadas nas sessões subseqüentes (Regimento da Assembléia Provincial de São Paulo definido pela Lei nº 23 de 12 de fevereiro de 1836). Raramente se evidenciava um debate político para além da rotina parlamentar. Um dos “momentos emblemáticos” de disputa teria sido a discussão sobre o Banco, que, por sua vez, discernia um projeto político liberal voltado ao uso do saldo dos cofres públicos provinciais na própria Província, mediante uma política de créditos.
[113] Idem, p. 80. “Por meio da atuação na Assembléia Provincial e da insistência do jornal A Phenix em atacá-los, pode-se considerar Vergueiro, Paula Souza e Tobias de Aguiar como o núcleo de um grupo político. Próximos a eles estavam principalmente Pe. Dr. Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, tido como redator d’O Observador Paulistano, Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, (...), Dr. Manoel Dias de Toledo e Francisco Álvares Machado de Vasconcellos (...) refiro-me com mais freqüência ao periódico A Phenix, crítico e combatente incansável do grupo que pretendo delimitar. O que ocorre é que jornais como O Observador Paulistano não foram conservados na mesma quantidade que seu opositor”. Hörner observa que A Phenix denominava o grupo conservador, ligado a José Pacheco, de “Partido da Ordem” e que O Observador Paulistano chamava os liberais de “Partido Paulista”.
[114] Idem, p. 99.
[115] Idem, p. 101. “O mesmo Gabriel Rodrigues dos Santos, alvo constante de chacotas, teria dito na Corte a um senhor não declarado: ‘Sinhô dotó!! Você-missé tem algum livro, que dé pra mim lé?’ (...) O Deputado Antônio Manuel de Campos Mello (...) teria proferido pelzistir, peltencer, aleplesentar, oldenar, folma, detelminação, entre outras (...) O vocabulário pobre atribuído a esses políticos (...) esse “português de negro”, possuía o claro intuito de desqualificar o adversário. Contudo, reforça a idéia da origem não-tradicional dos integrantes desse grupo”.
[116] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem..., Op. Cit., p. 121.
[117] HÖRNER, Erik. Op. Cit., pp. 105-109.
[118] Entre liberais e conservadores havia apenas escravocratas, sendo a única voz dissonante e isolada a de José Bonifácio. Depois do Tratado de 1826, também a lei aprovada em novembro de 1831, dispondo sobre o fim do tráfico de escravos, seria letra morta. Até 1850 muito se discutiria a questão, seja no Poder Legislativo ou no Judiciário. Trata-se, na verdade, de uma longa construção e se deve levar em conta que, em um Estado ainda em formação, seria muito difícil ao governo abrir mão da tributação sobre o comércio de africanos. Com a possibilidade de a proibição vir a se efetivar, o tráfico aumenta exponencialmente, a ponto de a oferta superar a demanda no final da década de 1840. Assim, o panorama posterior à lei de 1831 é formado por um enorme contingente de cativos trazidos de forma ilegal e que, legitimamente, passam a reivindicar a sua liberdade, por exemplo, mediante ações de liberdade. O Juiz de Paz, ao instruir o processo e julgar a contenda, era articulação-chave das incipientes e ávidas por braços grandes lavouras cafeeiras paulistas. A centralização do Poder Judiciário significou maior suscetibilidade dos grupos locais às políticas de Estado. Para uma apreciação clássica do fim do tráfico, (que o atribui à combinação entre o esforço inglês, o grande abastecimento do mercado brasileiro e um Estado com autoridades e recursos suficientes para tomar medidas efetivas), ver: BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil – a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos 1807-1869. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura/Edusp, 1976, pp. 309-343. Para uma apreciação mais atual, ver o instigante trabalho de Jaime Rodrigues: RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp / CECULT, 2000, pp. 97-119. Conforme estudos recentes de Keila Grinberg, o Brasil é o único país conhecido a apresentar ações de reescravização patrocinadas pelos proprietários (GRINBERG, Keila. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX”, In: LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Direitos e Justiças no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2006, pp. 101-128).
[119] FLORY, Thomas. Op. Cit., pp. 279-280. A decisão sobre as listas de votantes e de eleitores cabia ao juiz de paz e ao pároco que, normalmente, conforme a pesquisa desenvolvida por Flory, representavam facções diversas. A entrada do subdelegado era, portanto, decisiva para “el colorido político de la junta. Los liberales estaban presenciando la creación de um sistema em el que no tenían ningún acceso visible al poder. Al enfrentarse com esta perspectiva, los grandes contingentes liberales de Minas Gerais y São Paulo se levantaron em contra del gobierno conservador centralizante (...). El mecanismo específico de este nuevo sistema judicial electoral puede verse más claramente a nível del juez de paz. Em las parroquias em que los magistrados electos representaban uma facción que le desagradaba al gobierno, se nombraba suplente de alguacil a um oponente de esa facción, y se le encargaba promover a los candidatos del gobierno em la elección Los poderes jurídicos y policiacos del suplente, junto com su influencia em la cuestión de la conscripción local, generalmente podian ganar uma elección”.
[120] Idem, pp. 277-279. “(…) los ministros conservadores (...) se encontraron em uma posición sumamente fuerte después de la aprobación de la discutida reforma procesal (...) tuvieron pocas dificultades para persuadir al emperador de que disolviera la Câmara (...) el gabinete conservador se preparó para las nuevas elecciones transfiriendo jueces y llenando el nuevo cuadro de organización com sus partidários políticos”.
[121] A pesquisa de Marco Antunes Lima indica neste sentido: “Percebemos que nas duas primeiras legislaturas estudadas o número médio de votos se mantém, mas na terceira legislatura analisada (1841-1842) essa média aumenta, ou seja, podemos supor que o número de eleitores aumentou na Província” (LIMA, Marco Antunes. Op. Cit., p. 60).
[122] Idem, p. 68-69. “(…) os liberais não queriam de jeito nenhum que Pacheco possuísse o cargo de Juiz do Cível da Capital. Provavelmente porque tal cargo era o principal cargo de justiça do Termo da Cidade de São Paulo. Provavelmente Pacheco ameaça, como Juiz do Cível, os poderes locais dos liberais na Capital, pois coordenava os julgamentos na região”.
[123] Idem, p. 73. “(…) muitos deputados provinciais também eram vereadores ou juízes de paz em toda a Província (...) João Crispiniano Soares era uma das figuras do partido liberal mais presentes na Assembléia (...) também era juiz de paz (...). Outros juízes de paz da capital também foram deputados provinciais, como Antônio Manoel de Campos Mello (...), José Alves dos Santos (...) e Joaquim Ignácio Ramalho (...) as diversas esferas do poder se misturavam entre os homens daquele período”.
[124] Idem, p. 80. “Em sessão de 11 de fevereiro, a Assembléia recebeu um officio do Secretário do Governo cobrindo uma informação prestada pelo Juiz de Direito da 1ª Comarca (Vale do Paraíba), sobre ser ou não verdade que (...) proibiu que as câmaras e outras autoridades representassem contra as Leis que reformaram o código e criou o Conselho de Estado”. Observe-se que não se cita, no documento, como em muitos outros citados nos Anais, a Interpretação do Ato Adicional, de 1840.
[125] Idem, pp. 87-88.
[126] ANAIS da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo (1835-42). São Paulo: Tipografia Piratininga, 1923, pp. 30-46. Tanto o estudo realizado por Erik Hörner como aquele elaborado por Marco Antunes Lima serão muito importantes para esta pesquisa. Para Marco, “Muitas questões sobre a Revolução de 1842 e a Província nesse período ainda não foram respondidas e devem sê-las, pois tal assunto é de extrema importância para compreendermos a formação do Estado nacional brasileiro” (Idem, p. 90). Para Hörner, ao final de suas considerações finais: “Como fica evidente, este estudo está longe de ser conclusivo. Ao contrário, espera-se que estas ponderações, proposições e reflexões levem a outras pesquisas capazes de somar novos elementos aos aqui apresentados, de modo a preencher lacunas que insistentemente permanecem abertas” (HÖRNER, Erik. Op. Cit., p. 184). Por fim, é necessário acrescentar que, segundo José Reinaldo Lopes, “há um vastíssimo campo do saber a ser desbravado na disciplina jurídica (...) E no campo particular da história do direito ouso dizer que no Brasil resta tudo por fazer” (LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história... Op. Cit., p. 27).
[127] HESPANHA, Antonio Manuel. Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e lei no constitucionalismo monárquico português. Coimbra: Editora Almedina, 2004, p. 14.
[128] Idem, p. 15.
[129] Ibidem.
[130] Ibidem. Por “totalidade”, Hespanha compreende verificar se constitui um “conjunto de mensagens emitidas com intenções originárias”, seja a receptores ou a destinatários com “específicos horizontes de leitura e diferentes ‘intenções de apropriação’”. E, ainda que traga sentidos novos (forma ampliativa do discurso), é limitado por um vocabulário e uma gramática (forma restritiva). Se é imaterial (sobretudo hoje, ao historiador que vê a lei com certo distanciamento prático), é necessário saber que “realiza-se através de dispositivos duros, constituídos por pessoas, artefactos materiais, sistemas de organização”.
[131] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história... Op. Cit., p. 18.
[132] Idem, pp. 22-23.

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