sexta-feira, 14 de maio de 2010

Preâmbulo - Do rancor de Apolo à alegoria do vampiro: leituras da peste, sombras da morte

O trabalho a seguir foi desenvolvido no 2º semestre de 2007 como requisito parcial para a conclusão da disciplina História Antiga II, sob orientação do Professor Dr. Francisco Murari Pires. As figuras estão reproduzidas em versão reduzida no post seguinte ao texto e talvez seja difícil vê-las; poderei enviá-las para quem se interessar. Sugiro fortemente ao navegante a visita a Heros, o magnífico e labiríntico site deste professor (clique aqui). Abaixo, seguem excertos (fontes escritas) que abrem este trabalho.


_____________________________________________

Para Elisa, pelo torvelinho de imagens que cultiva;
pelas observações sempre tão inteligentes e instigantes.
_____________________________________________


.
Quando, porém, o vinho tinha subido à cabeça do Ciclope,
[Ulisses] disse-lhe então com brandura: Ciclope, tu perguntas-me o meu
ilustre nome. Vou dizer-to; mas dá-me o prometido dom de
hospitalidade. Ninguém, é o meu nome. Minha mãe, meu pai e
todos os companheiros costumam chamar-me Ninguém.
Assim disse; e ele replicou-me logo com ânimo cruel:
- Ninguém será comido, depois dos seus companheiros; a
eles comê-los-ei primeiro. Este é o presente de hospitalidade
que hei de dar-te (...). O gigante soltou um tremendo urro, tão forte que a rocha
ecoou em volta e nós recuámos, assustados. Extraindo, depoís,
do olho o pau sujo de sangue, o Ciclope louco de dor,
arremessou-o de si com as mãos e chamou a altas vozes os
Ciclopes que habitavam em covas, à roda dele, pelos cumes
expostos aos ventos. Ao ouvirem os seus gritos, acorreram uns
de um lado, outros doutro e, parando junto da gruta, perguntaram-lhe:
- Que aflição é essa, Polifemo? Porque gritas? Leva-te,
porventura, alguém os teus rebanhos, mal grado teu? Matam-te por astúcia ou por violência?
Do seu antro respondeu-lhes o robusto Polifemo:
- Oh, amigos, Ninguém me mata, por astúcia, não por violência.
Em resposta, disseram-lhe estas aladas palavras:
- Se, pois, estás só e ninguém te faz violência, é
inevitável a moléstia que te envia o grande Zeus


Odisséia, de Homero, tradução: Pe. E. Palmeira e Pe. M. Correia, pp. 86 e 87.

_____________________________________________



(...) À memória dos mortos – fala o cidadão levantando o copo e olhando feroz para Bloom (...) Eram exactamente dezessete horas (...) – Está em marcha – fala o cidadão. – Pro inferno cos danados dos brutos dos sassenos e seus patois.
Aí J.J. mete sua fala numa lengalenga a respeito de que uma história é boa até que a gente ouve outra e o escurecimento dos factos e a política de Nelson pondo o olho cego no binóculo e baixando um decreto de moratória para sufocar uma nação e Bloom tentando apoiar ele em nome da moderação e da foderação e as colônias e a civilização deles.
– Sifilização deles, é o que você quer dizer – fala o cidadão. – Pro inferno com eles! Que a maldição desse prestapranada de Deus arrebente os costados desses sacanas desses estupidões desses filhos das putas! Nem música e nem arte e nem literatura dignas do nome. Qualquer civilização que tenham é a que roubaram de nós. Esses gajos desses filhos de fantasmas bastardos”.
.

Ulisses, de James Joyce, tradução: Antônio Houaiss, pp. 397, 400 e 421.

_____________________________________________



Os piores anos da peste bubônica no sertão do Cariri foram [19]36-37, quando ocorreu intenso surto epidêmico na cidade de Crato (CE), atingindo também na vertente sul da Serra do Araripe o Município de Exu (PE).

O tratamento com soro antipestoso, em geral, era iniciado tardiamente. Não tinha sido ainda descoberta a estreptomicina eficaz na cura da doença. Os coeficientes de mortalidade eram muito elevados e a peste apavorava.

Naquela época estava sendo melhorada a estrada carroçável que seguia a Chapada do Araripe de leste a oeste até Picos, no sertão do Piauí.

Um parente meu, engenheiro Martins de Freitas, estava encarregado de um trecho compreendendo a descida da Chapada para Exu. Ele viajava muito por aquelas bandas e às vezes parava em uma pequena bodega que havia na estrada próximo da descida da Serra. Ali tomava café, procurava saber notícias de Exu, se tinha passado cangaceiro por lá, se estava havendo peste.

Um dia seu Cecílio informou: ‘a peste ta tinindo no pé da Serra de Exu, mas aqui graças a Deus tudo calmo’. ‘Depois eu preparo uma garrafada de sete meizinhas que é garantida, fecha o corpo, a peste perde a força’.

Uns três meses depois José Martins fez nova parada na bodega e viu toda família de preto.

- Quem morreu, seu Cecílio?

- Foi uma sobrinha, ela foi pra Rancharia e a bubônica derrubou.

- Ela não tomou a garrafada?

- Tomou; mas a garrafada estava desunerada; parece que eu carreguei a mão no querosene”.



Celso Arcoverde de Freitas
Histórias da Peste e de outras Endemias, 1966

_____________________________________________
.
.
.
.
.
.
.
..

Nenhum comentário:

Postar um comentário