segunda-feira, 17 de maio de 2010

Volto porque te amo

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Proponho o exercício de ler um filme. Viajo porque preciso, volto porque te amo. Primeiro, a localização dos realizadores, das biografias, da formação acadêmica, da obra pregressa.

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As camadas mais evidentes que presidem a narrativa: a transposição do rio São Franciso, o olhar do geólogo sobre o Nordeste setentrional, a dor da separação.

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Um plano mais atento: a forma da narrativa, a primeira pessoa, a linearidade do tempo presente, o personagem jamais visto. Os grandes planos. A acuidade fotográfica.

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O labor técnico: a multiplicidade dos suportes do registro cinematográfico. Uma câmera digital, uma máquina fotográfica. Uma bitola 35 mm, onerosa, uma Super8, acessível ao cineasta mais jovem, tão cara a Fernando Spencer no Recife de outros dias. O que escapa do olhar? Quando se usa a 16, quando a 35 a eu mais leigo? O que a experiência sobre a cena modifica ou é modificada? Quais as dimensões de cada uma das sensorialidades dadas a conhecer pelos cineastas? Por que motivo uma em detrimento da outra, em que momento?

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Quanto ao caminho: um relato de viajante, de peregrino, descendente da cultura retirante. Um diário. Uma obra epistolográfica a Galega, destinatário já inexistente. A riqueza do olhar, uma descoberta. A viagem transformadora, o rito de passagem. Da costa ao sertão. Do mito à aridez da experiência do vivido. Viaja porque precisa se reencontrar.

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O jogo de opostos: a observação metodológica do geólogo exato, a angústia do espírito ferido. Quer voltar, não quer voltar. A despedida da esposa: não volto porque ainda te amo. E se liberta: não há mais como voltar.

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No uso dos planos e dos enquadramentos: conforta e desconforta o narrador-espectador no espaço da cena, detrás de um caminhão baú, diante dos grandes planos.

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Narrador-cineasta: observa o casal de velhos, afogados no peso de suas fotos, ex votos, imagens. O marido sai do plano. Pede que volte. Não é ele quem vai separá-los, mas representa a separação do casal de suas memórias. Representa a vazão do rio, o progresso, a flecha do tempo.

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No plano sinestésico: a sobreposição das leituras: a transposição da alma, afogada no amontoado da memória. Ao fim se liberta do afogamento, mergulha para a vida. A aridez do solo, a desolação da paisagem, do personagem. As cidades esvaziadas. O vazio dos futuros desalojados; nada está adiante. A imagem chapa a realidade documental; os sons desmentem os olhos e nos deslocam ao plano mítico. A canção do sapateiro é ponto alto, inocente, desperta risos, afeição, prazer estético. O sapateiro entretece som e imagem, prega no couro do calçado mito e realidade.

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Uma crítica: o cineasta não explora a geologia, não ensina ao espectador a linguagem da pedra, não mostra o lento movimento da montanha, não desvenda os desvãos da linguagem técnica, não desenha o contorno da bacia, oportunidade perdida.

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A dimensão social: se não é explícito como Madame Satã, é sensível. A prostituta deseja a vida-lazer. O que é lazer, pergunta, é ter alguém para amar, responde. Uma casa. O narrador paga por prazer, redescobre-se. Com outra garota, desiste no caminho para o programa. Olhar triste da garota, incômodo. Desconforto persistente, dolorido. A miséria salta aos olhos, a ignorância salta aos olhos, a religião assalta os olhos: a festa da Padroeira. Padre Cícero. Juazeiro do Norte está sempre cheia de gente.

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A política: o rio, a obra, por que a insistência, pergunta, não é problema seu, responde, dá de ombros, os realizadores não respondem. As cidades se esvaziam. A diversão rudimentar do circo diante da iminência do dilúvio. Um casal conversa, é ricamente descrito, agora já é possível rir, maravilhar-se com a presença do outro.

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De um grande mérito: tem coragem de inovar, de contrariar os manuais, é exímio com o tratamento da imagem, forma e conteúdo. É experimental, não amador. É arte e entretenimento. Como o rio, busca um novo caminho.

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Ao final do filme, depois de longos mergulhos, experimentei uma sensação de profunda imersão. Poucos, senão nenhuns, levantaram-se até muito tempo depois de se erguerem os letreiros. A música deu seqüência à narrativa e tornou trabalhoso se desapegar da poltrona. Um filme rico de ser lido.

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